Rio, 14 de junho de 1890
Meu Pai
Desejo-lhe muitas felicidades e saúde bem como a Adélia, da qual até agora ainda não recebi carta alguma em resposta a muitas que já lhe tenho escrito. Recebi uma carta sua um dia após a um telegrama em que o sr. dizia não poder vir agora por se achar com os trabalhos da colheita de café e esperava o sr. Claudiano. Espero pois o sr. e Adélia em princípios de julho e não posso dizer com que alegria espero o momento de vê-lo abraçar aquela a quem já chamou de nova filha e que verdadeiramente é em tudo digna disto.
Disse o sr. que tendo o casamento de se realizar em setembro havia muito tempo para os aprestos dele; me parece, porém, e será mais conveniente para mim, que ele poder-se-á realizar antes, em agosto, por exemplo e já acordaram neste ponto comigo a d. Túlia e o coronel Solon.
Assim eu terei tempo de harmonizar essa brusca mudança de estado com a quadra trabalhosa dos meses de outubro, novembro sem o menor prejuízo para os meus estudos. Já agora eu sinto e confesso ao sr. com a maior sinceridade que me seria penosíssimo esperar, pois é muito difícil afastar a preocupação constante que alimento e prefiro antes do que pensar nas grandes responsabilidades do futuro, senti-las e desempenhá-las. A conselho do Solon desliguei-me inteiramente de algumas ligações políticas que começava a ter; não escrevo de há muito para a Democracia — Parece-me que fiz bem; desconfio muito que entramos no desmoralizado regime da especulação mais desensofrida e que por aí pensa-se em tudo, em tudo se cogita, menos na Pátria. As minhas aspirações acham-se contudo de pé: retraio-me agora; estudarei, tratarei de formar melhor o meu espírito e o meu coração e mais tarde, passada essa febre egoística e ruim que parece alucinar a todos, quando sentir-se necessidade de homens e os que atualmente escalam cegamente as posições, conscientes da própria fraqueza, delas abdicarem voluntariamente —aparecerei então, se puder, se quiserem. Sei que o sr. aprova esse proceder — pelo menos porque assim procedendo eximo-me à decomposição geral que por aqui parece visar o aniquilamento das mais sólidas individualidades. Imagine o sr. que o Benjamin, o meu antigo ídolo, o homem pelo qual era capaz de sacrificar-me, sem titubear e sem raciocinar, perdeu a auréola, desceu à vulgaridade de um político qualquer, acessível ao filhotismo, sem orientação, sem atitude, sem valor e desmoralizado — dói-me dizer isto — justamente desmoralizado. Eu creio que se não tivesse a preocupação elevada e digna que me nobilita, teria de sofrer muito, ante esse descalabro assustador, ante essa tristíssima rumaria de ideais longamente acalentados... Eu sinto-me feliz considerando que o sr. se acha aí, longe, bem longe do ambiente corrupto que nos envolve aqui.
Peço-lhe que me responda com brevidade. Não posso dar notícias de amigos e conhecidos porque não tenho descido à cidade.
Peço-lhe que dê por mim um apertado abraço em Adélia e abençoe ao seu filho e amº.
Euclides
Capital Federal, 11 de dezembro de 1893
Meu Pai
Abraço-vos desejando saúde e felicidades.
Escrevo sob a mais triste impressão. O longo afastamento dos que tanto estimo aliado aos trabalhos da minha posição, as preocupações que a todo momento me agitam, o pensamento constante no futuro e toda a incerteza do presente — têm-se refletido da pior maneira sobre mim. Sinto-me abater dia a dia, minado por doença pertinaz (peço-vos não dizer isto a Saninha) sinto-me cada vez mais fraco e com o pressentimento cada vez maior de um tristíssimo fim. A minha energia moral pode apenas dominar todo esse abatimento da minha natureza. Se há um Deus, ele sabe de quanta virtude eu disponho para arcar com o cumprimento de tão penosos deveres; aliados a sacrifícios tão grandes. Acabo de receber uma carta de Saninha que ainda mais me abateu: diz-me que está doente e pede-me para ir buscá-la. Eu sei que ela deve sofrer muito na dolorosa situação em que está, na iminência constante de uma viuvez que a pode assaltar quando menos a esperar, mas o que hei de fazer? Não posso sair daqui. Não posso abandonar a minha posição. Não posso desonrar-me pela deserção — não posso, não devo e não quero. Apesar disto não a quero contrariar. Ela tem sofrido tanto que eu não seria digno se permanecesse surdo ao seu pedido. Quando surgiu essa maldita revolta que a tantos tem feito sofrer, pensei imediatamente no sr. como a única pessoa capaz de me amparar no doloroso transe, a única a que eu podia confiar a minha mulher e o meu filho. E eu não me iludi. Estou certo de que a Saninha encontrou no sr. um verdadeiro pai (e isto ela me tem dito) — mas como na carta que me acaba de enviar disse-me que se sente doente e teme até morrer aí, desejando voltar, eu, não podendo sair daqui, fico no desespero dos que não podem tomar deliberação alguma. Como contrapeso a tudo isto aparece-me agora uma tosse insistente e rebelde e progredindo espantosamente. Os médicos dizem que eu devo ter muito cuidado, que os sintomas são maus e etc. Nada porém eu posso fazer, nem mesmo para tratar da saúde se dão licenças. Vivo uma vida realmente miserável — não por falta de dinheiro — sem poder ter a mais ligeira higiene como regularidade de alimentação. Reconheço assim que é preferível que aqui estejam a Saninha e o filhinho, apesar de todos os perigos; quando menos eu sairei de um modo de vida ao qual estou certo que o meu organismo não pode resistir. O sr. tem explosões de gênio mas o coração generoso sempre e o pensamento sempre digno — há de compreender a situação dolorosa em que me acho e fazê-la cessar.
Meu pai, eu sinto o maior abatimento — corolário inevitável de preocupações e trabalhos que tenho tido — peço, pois para desculpar o desânimo que transpira desta carta, lembrando-se que ela é de um filho que vos estima muito mas que atualmente sofre também muito. Todos daqui que me vêem acham-me ainda mais abatido e alquebrado. E um dos motivos que fazem com que eu deseje satisfazer o pedido de Saninha é o pressentimento constante de que se tal não fizer talvez não veja mais o filhinho e ela.
Peço para recomendar-me a todos; desculpai e abençoai ao seu filho
Euclides da Cunha