Oakland, 3 de Abril de 1901.
Querida Anna,
Eu disse que o humano poderia ser classificado em categorias? Bem, se eu disse, deixe-me corrigir - não todos os humanos. Você me ilude. Não posso classificá-la, não posso comprendê-la. Eu posso me gabar que em nove de dez sob as mesmas circunstâncias, através de sua palavra ou ação, posso sentir o pulsar de seus corações. Mas o décimo me desespera, está além de mim. Você é este décimo caso.
Eram sempre duas almas, com lábios insensíveis, mas incongruentemente emparceirados! Podemos sentir as mesmas coisas - certamente nós muitas vezes o fazemos - e quando não sentimos as mesmas coisas, ainda assim nos entendemos; e ainda não temos uma língua comum. Palavras faladas não chegam até nós, nós somos ininteligíveis. Deus deve rir da atuação.
O único vislumbre de sanidade através disto tudo é que somos ambos grandes temperamentais. Grandes o suficiente para freqüentemente nos entender. Na verdade nós com freqüencia nos entendemos, mas em vagos vislumbres., através de escuras percepções, como fantasmas que enquanto duvidamos nos assombram, com sua verdade. E ainda eu de minha parte, não ouso acreditar; pois você é aquele décimo caso, o qual não posso prever.
Sou agora ininteligível? Eu não sei .Eu imagino que sim. Eu não posso encontrar a língua comum.
Grande temperamentalidade - É isso. É a única coisa que nós coloca todos em contato. Nós temos, lampejando através de nós, você e eu, um pouco do universal, e então nós nos aproximamos. Mesmo sendo tão diferentes.
Eu sorrio para você quando você se torna entusiasmada? É um sorriso perdoável - não, quase um sorriso invejoso. Eu vivi 25 anos de repressão. Eu aprendi a não ser entusiástico. É uma dura lição a se esquecer. - eu começei a esquecer, mas só um pouquinho. No melhor dos casos, antes que eu morra, eu não posso esperar esquecer tudo ou a maior parte. Eu posso me alegrar, agora que eu estou aprendendo, em pequenas coisas, em outras coisas, mas não das minhas coisas, e coisas secretas duvidosamente minhas, eu não posso, eu não posso. Posso me fazer inteligível? Você ouve a minha voz? Temo que não. Existem fingidos. Eu sou o mais bem sucedido de todos eles.
Jack
Jack London (*)
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(*) Escritor americano, pseudônimo de John Griffith Chaney (São Francisco , 12 de janeiro de 1876 - 22 de novembro de 1916), foi um escritor americano, autor de mais de 50 livros. Dentre os seus livros mais conhecidos encontramos: "O Chamado Selvagem", "Caninos Brancos" e "O Lobo do Mar", entre outros.
depois de ter dado várias voltas ao Mundo e de ter vivido nos locais mais exóticos do globo, das neves do Alasca às praias dos mares do Sul. Quando morreu, London era um símbolo universal da rebeldia e da febre da viagem, o protótipo do escritor-aventureiro, o homem que era impossível esquecer depois de se ter conhecido, que reunia “o corpo de um atleta e a mente de um pensador” (nas palavras do seu primeiro amor, Anna Strunsky).
Tinha atingido uma situação social a milhas da pobreza da sua família de origem e uma popularidade que, mesmo nesses tempos de difíceis comunicações, excedia largamente as fronteiras dos Estados Unidos da América. Num período de apenas vinte anos tinha escrito mais de cinquenta livros, que foram traduzidos em dezenas de línguas e conheceram tiragens de milhões de exemplares, muitos dos quais tiveram um sucesso estrondoso e deram origem a mais de cem adaptações ao cinema (onze delas ainda durante a vida de London), e as suas declarações e proezas eram estampadas na primeira página dos jornais.
Este homem, porém, sempre que podia fazê-lo, recusava-se a admitir que era um escritor, repetia vezes sem conta que apenas escrevia porque era essa a actividade que lhe fornecia o seu sustento (“Quando escrevo uma boa frase não penso quanto é que ela vale no mercado, mas quando me sento a escrever é nisso que penso”) e aproveitava todas as oportunidades para dizer que deixaria a escrita se as suas condições financeiras lhe permitissem esse luxo.
London preferia apresentar-se ao seu público mais como um aventureiro, um viajante, um homem de acção, um criador de gado ou um pescador de pérolas do que como um homem de letras — e é inegável que essa pose lhe era infinitamente conveniente, independentemente da sua dose de sinceridade. (“Prefiro ser cinza do que pó. Prefiro ser um meteoro com todos os átomos numa magnífica incandescência do que um sonolento planeta permanente”, reza o seu credo.) Os seus inúmeros fãs, deslumbrados pelo homem ou pela obra, pelas suas ideias avançadas de socialista ou pela sua inquebrantável defesa do individualismo, pela emoção das suas histórias ou pela sua vida de “globe-trotter”, compravam os seus livros. Para London, as letras proporcionavam-lhe o dinheiro para gastar numa nova viagem, na construção de um novo barco, de um rancho, de um novo sonho, mas não eram uma profissão.
A literatura tinha aparecido como uma alternativa possível, precisamente depois de uma estadia frustrada no Norte do Canadá, na região do Yukon e do Klondike, que serviria de cenário a muitos dos seus romances e contos (nomeadamente “O Apelo da Selva”, publicado em 1903; “Presas Brancas”, de 1906; e “A Febre do Ouro”, de 1912). London tinha-se lançado em 1897 na corrida ao ouro no Klondike, depois de ter deixado os estudos aos catorze anos, mas os meses passados aí, de extrema dureza, não lhe tinham permitido encontrar a riqueza.
De regresso à civilização, decidiu tornar-se escritor, com a convicção de que apenas a literatura o poderia salvar de uma vida de “besta de carga”. Fez a sua aprendizagem do ofício de escritor como autodidacta, transformando os seus hábitos de leitor compulsivo em verdadeiras aulas, estudando livros e artigos de revistas e disciplinadamente definindo um horário diário de escrita, com exercícios constantes (poemas, anedotas, contos de terror, contos de aventuras) e enviando as suas produções para revistas que as iam sistematicamente recusando. A disciplina manter-se-ia pelos anos fora e tornaram-se famosas as 1000 palavras por dia que fez questão de escrever durante toda a sua vida. As recusas manter- -se-iam durante dois anos, após o que, um dia, uma revista, “The Overland Monthly”, aceitou um artigo: “To the man on trail”. Era Janeiro de 1899. Um segundo artigo, “A Thousand Deaths”, seria publicado no ano seguinte, numa revista chamada “The Black Cat”. Um primeiro livro de contos (“O filho do lobo”) vê o prelo em Novembro de 1899, mas o primeiro sinal de notoriedade virá com a publicação de “An Odissey of the North” no “Atlantic Monthly”, em 1900, já nessa altura com um faro infalível para os bons autores.
Fonte:
http://www.publico.clix.pt/sites/coleccaojuvenil/ livros/11.febredoouro/index.htm