Vila Viçosa, 5-1-1920
Amigo meu,
Recebi a carta e o jornal. Obrigado. O vagabundo postal continua a correr as estradas...
Não respondi há mais dias à sua carta porque tenho estado de cama, doente. As tardes têm-me trazido uma ligeira febre e tenho tido grandes dores de cabeça, irritantes e, por vezes, intoleráveis.
Segundo rezam as crônicas, eu já sou um pouco doida, imagine como estarei depois disto!... Só hoje me levantei um pouco. Logo pela manhã muito vaidosamente pedi um espelho para me ver. Fiquei contente: muito pálida, com a boca muito pálida, com umas grandes olheiras roxas, a cabeça envolvida por ligaduras brancas, era eu mesmo... mesmo... adivinhe quem? Pois era mesmo... mesmo... Soror Saudade!
E, como uma escandalosa trança preta aparecia a perturbar um pouco a grave religiosidade da minha pessoa, pedi que a escondessem bem. As monjas têm o cabelo cortado, pois não têm? Riram-se da minha infantilidade e talvez me chamassem doida, mas eu fiquei contente porque então é que era eu mesmo, mesmo igual a Soror Saudade. E olhe que eu estava muito interessante! Faça favor de não rir assim com esse riso impertinente! Eu bem sei que V. não acha interessantes as pessoas pálidas, como eu, mas bem sabe que pelas nossas charnecas, felizmente, ainda não se vende carmim...
Que pena eu tive por ver o seu lindo soneto estragado! Antes tivesse sido o meu. Ninguém seria capaz de o tornar pior, por muito mal que lhe fizessem. Eu quero mais, muito mais aos seus versos do que aos meus. E há tanto tempo já eu lhes quero. Lembro-me, como se fosse hoje, do dia, da hora em que li pela primeira vez os seus versos.
Eu queria que V. visse, que estivesse a ver, realmente, com os seus olhos, tudo o que me cercava, quando eu os li; queria que visse a casinha de jantar modesta e alegre: muitas flores por toda a parte, aqui e além panos bordados; três ou quatro coisinhas de prata quase sem valor, um cinzeiro de loiça da China, lindo e precioso como uma jóia cara e a um canto, junto a uma janela onde, fechado, descansava o seu livro entre as poesias de Verlaine e o último romance de Coulevain. Eu chegara de um baile, cansada, sonolenta. Eram 4 horas da manhã. Toda a gente tinha ido dormir e eu fiquei ainda, sonolenta, cansada, a olhar a noite, a pensar não sei em quê...
Dei com o seu livro, que tinham trazido na minha ausência; folheei-o interessada, rapidamente; depois sentei-me junto da janela e li-o, li-o, li-o todo, duas ou três vezes, já sem sono, já sem cansaço.
A perturbar-me, florescia no meu peito, num grande riso aberto, um ramo de cravos brancos. Fechavam-se no céu escuro os olhos das estrelas,. Eram 5 horas da manhã. O meu cão, um lindo Irish-Setter, olhava-me, admirado.
V. não tem notado uma coisa interessante? Eu estou sempre vestida de verde ou de roxo nos dias em que o encontro.
Pois nessa noite, ainda lembro-me muito bem – eu tinha um vestido verde todo coberto de rendas prateadas. O meu vestido não era, certamente, um Redfern ou o último modelo de Worth ...
Eu era apenas, naquela noite, um regatozito ao luar... Tinham murchado no meu peito os cravos brancos. Veio-me uma profunda ansiedade, uma grande vontade de ser feliz, de fazer feliz toda a gente e, numa grande ternura, lembro-me de ter abraçado docemente a linda cabeça fulva do meu cão.
O seu livro dormia outra vez fechado entre as poesias de Verlaine e o último romance de Coulevain e eu, que há tanto me buscava, tinha-me encontrado, enfim!
Do seu livro veio o meu livro.
Obrigado, amigo meu!
Agora, e antes de mais nada, deixe que eu lhe peça humildemente perdão da gafe tremenda daquela tarde do Viana da Mota. Lembra-se? Falava-se de F.C.. Com um grande entusiasmo, descreveu-ma muito interessante e falou-me quase com enternecimento da graça da sua linda mocidade, dos seus lindos 19 anos. E eu que nada compreendi! Se eu lhe disse, porém, que ela não era bonita nem elegante, foi pelo que toda a gente me tinha dito. Como se uma mulher para agradar precisasse de ser uma escultura! Meu Deus, como eu às vezes sou estúpida! E creia, meu Amigo, que eu de forma alguma antipatizo com ela. Foi tão gentil para mim que, sem a conhecer, merece-me toda a simpatia.
O que é certo é que eu não podia adivinhar que naquela fria tarde chuvosa o seu coração andava aconchegado por um lindo idílio cheio de sol...
Há poucos dias é que alguém, por acaso, me falou do seu grande amor por ela. V., afinal, podia ter sido para mim um pouco mais franco... Lembra-se de me ter dito uma tarde, falando-me da mulher que havia de amar e que ainda não encontrara na vida: “Sinto-a perto de mim”. Tão perto de si a tinha, que já lhe queria bastante para nada a sua boca dizer, mesmo à sua irmã, mesmo a Soror Saudade!...
Fez mal. Enfim, que ela realize todos os seus sonhos, que ela saiba ser também a irmã e às vezes quase mãe. Não deixe fugir a ventura e, já que a encontrou, guarde-a bem. Olhe que a única maneira de na vida ser feliz, principalmente os seres como V. de uma grande sensibilidade, de uma extraordinária imaginação, a única maneira é construir-se um lar bem doce, bem cheio de luz onde, longe do mundo, se possa amar, se possa trabalhar, se possa viver.
Lá dentro, a vida á boa! Lá fora, o vento, irmão gêmeo de Chopin, pode fazer soluçar a todos os seus violinos as notas estranhas dos nocturnos que em noites de insónia compõe.
Que importa? É decerto da minha opinião, visto que se diz igual a mim. Eu não conheço a F.C.. Não sei se ela é mulher para si. Deve ser difícil agradar-lhe, compreendê-lo. É preciso, talvez, muita inteligência, um tacto perfeito, uma grande educação e uma grande doçura de todos os dias. Ela deve ter tudo isto, visto V. a ter escolhido. Perdoe-me falar tanto de coisas de que V. nunca quis me falar, não sei porquê... E também lhe digo que nós não somos nada, mesmo nada parecidos. Em si há dois seres bem diferentes; um que eu admiro, que eu estimo, que compreendo, que conheço; outro que me assusta, de quem eu quase tenho medo, que eu não conheço, que eu não sou capaz de compreender. Já que no seu caminho encontrou a Ventura, Américo, seja bom, não minta nunca, não faça sofrer ninguém, não?
V. agora não tem razão nenhuma para querer mal à vida que lhe deu o que há de melhor, não tem razão para ser mentiroso, para ser dissimulado e mau, e todas as coisas feias que um dia me disse ser.
Já não é, pois não? Enquanto a mim e às minhas recordações, deixe-me dizer-lhe e pela última vez, sim?, que eu não tenho recordações. Ninguém guarda lembranças do que profundamente despreza. Nunca mais falaremos disto, quer? Que estas palavras bastem: sofri porque não sou leviana nem fútil. Para me salvar, meu amigo, imitei a célebre frase de Danton: para salvar a França ele gritou bem alto “Audácia, audácia...” e mais audácia?! Não me lembro de mais nada. Nunca mais falaremos disto, quer? Eu não tenho nada, nada, nada a prender-me, no passado como no presente. É verdade que nós vamos ser amigos, muito amigos os dois? É verdade que nós o somos já? Não acredito. V. não vê que eu não posso acreditar? É como se estendesse para mim, neste áspero Janeiro, misericordiosamente, um braçado enorme de esplêndidos lilazes brancos, iguais aos que Abril nos traz. Soror Saudade olha-os de longe, sorri tristemente, comovidamente, perturba-se de leve e diz que não aceita, que não quer os seus esplêndidos lilazes brancos. Soror Saudade só acredita em flores roxas e diz que tem medo que os lindos lilazes brancos se desfolhem em neve ao sentir a neve das suas mãos. Depois, elas ficariam ainda mais frias e mais pálidas. E na verdade, V. deve juntá-las às rosas vermelhas que são da F.C.. Diz bem na loucura de um grande amor a pureza de uma ternura amiga e um homem deve sempre, e primeiro que tudo, fazer da mulher amada a sua maior e melhor amiga.
V., então, não se sente bem nessa linda Lisboa? Inveja-me a serenidade que eu gozo aqui. Mas quem lhe disse que eu gozava aqui a mais leve calma? Este contraste mortal do imenso, da fria serenidade destas planícies infinitas, destes dias tristes, com a minha alma tão pequenina, tão cheia de ternura, tão cheia de aconchegada e tépida ternura dos sonhos bons, irrita-me, enerva-me mais ainda que o bulício dessa Lisboa “sempre a mesma, sempre secante, sempre Lisboa...”
Urso! Não se esqueça de prevenir a mulher com quem casar dos seus lindos gostos rústicos. Ela, se não for pele vermelha ou súbdita de Gungunhana, afoga-se mas não casa, não casa porque tem medo de vir parar no Alentejo, à calma doçura do monte... Apre!... Isto é tudo muito lindo! Num dia como hoje, por exemplo: a chuva cai, diz coisas sonolentas, coisas tristes, num ar vagamente sonâmbulo de quem já não sofre, num ar morno de suprema lassidão, de suprema renúncia, como quem se resigna a todas as misérias, como quem se resigna a todas as cobardias.
Parece que a chuva diz rezas, rezas frias, murmuradas por lábios frios num frio claustro de convento.
Parece que a chuva fria fala num delírio incessante, febrilmente vago, num salmear inconsciente, como quem vai morrer. Eu não sei se V. tem sentido a nostalgia destes dias assim, mas eles evocam em mim a tragédia das almas que se calam, das que já não se queixam, das almas galvanizadas na angustiosa tormenta de impossíveis sonhados um dia e nunca realizados.
Quando nesses dias eu olho as planícies vastas, tenho medo de ver, insensivelmente, transformar-se meu olhar no olhar espectralmente parado das estátuas. Então agito-me, sacudo-me, falo alto, canto como as crianças que têm medo das sombras imóveis das árvores numa estrada deserta. Tudo é grande, tudo parece fugir, fugir sempre ao longe, como aqueles fantásticos castelos de brumas, onde ninguém chegava nunca – a chuva continua a dizer sempre a mesma coisa, a embalar o tempo que adormeceu agora...
No meu jardim, o vento sacode as rosas e o frágil veludo das pétalas todo se dobra em crispações de cor.
As baunilhas, muito roxas, inclinam-se a chorar pequeninas lágrimas tênues que eu adivinho entre a seda verde das folhas.
Não sei se o vento fustiga as rosas ou se as abraça. As mãos brutais são muitas vezes as que melhor acariciam. No jardim vizinho, um cedro enorme, baloiça ao vento a cabeleira escura. Árvore de cemitérios, parece lamentar neste dia triste não sentir as raízes viver de encontro ao coração dos mortos!...
Isto é tudo muito lindo! Na minha janela, as mãos estranhamente puras da chuva, mãos que só elas são toda a beleza e toda a arte, traçam imperceptivelmente complicados símbolos.
Pareceu-me ver agora as mãos da chuva traçarem um gesto cheio de ritmo e harmonia, esculturalmente perfeitos os seus versos onde soluça o meu nome: Soror Saudade... Soror Saudade!... Mas, afinal, eu passei o dia a escrever-lhe! Escandalosa coisa!... Quero em troca uma carta tão grande como esta, mesmo do tamanho desta, tal qual, tal qual, ouviu?
Quero uma carta grande como um romance de 20 volumes, como o Rocambole , por exemplo. Meu irmão há dias que aí está. Andou por cá numa corrida de velocidade com as perdizes e as lebres através de montes e vales. Muito azar tem o pobre rapaz com semelhantes bichos! Eu posso estar descansada, as perdizes atrás das sebes, em risinhos impertinentes podem à vontade fazer traça da elegância smart do seu fato de caçador, e as sacerdotisas da planície podem gravemente oficiar nos seus vastos templos. As balas passam longe! Eu julgo que ele tem mais sorte com as raparigas, não lhe parece? Quanto à sua visita, que hei-de eu fazer? Inclino-me também perante o feroz dragão que guarda o palácio. E a princesa? Já lá não está?
Envio-lhe o meu último soneto. Juro-lhe que V. tem razão em preferir os da... por todas as razões além daquela que eu sei apenas há dias... Por que não mo disse V.? Não falemos mais nisso. Escreva muito. Olhe que eu já lhe disse como queria a carta: - pouco mais ou menos como os Mistérios de Paris, mas sem mistérios.
E visto que me tem dentro do envelope lilás, guarde-me bem, como se eu fosse uma pequenina violeta a murchar dentro de um livro de versos de um poeta já morto. Não diga a ninguém que me tem lá, não?
O ano de 1920 há-de ser para mim um rosal florido, acredito, mas florido de espinhos, de muitos espinhos. As rosas são talvez iguais àquelas de que falava o poeta:
“Elle était de ce monde ou les plus belles choses
Ont le pire destin
Et, Rose, elle a vécu ce que vivent les roses
L'espace du matin.”
Alors, adieu, mon ami très cher.
De tout mon Coeur, votre petite amie.
Florbela.
Florbela Espanca
Enviada pela responsável doravante pelo setor: Idalina de Carvalho