NOTA PARA UM OBTUÁRIO

      (Carta ao Jornal O Globo)

Sr. editor, por favor,

anote no obituário deste jornal: acaba de falecer a rede de teatros públicos do Rio de Janeiro. O tiro de misericórdia foi dado pela Prefeitura do Rio: cancelou-se o contrato que mantinha o sistema de som e iluminação dos teatros, aparelhos e operadores da rede municipal. Ou seja: quem fizer uma temporada num teatro do município terá que arcar com esses gastos, o que encarecerá as temporadas, tornando os custos dos teatros ditos públicos bem próximos aos dos teatros privados. Isso praticamente exigirá que as produções que solicitem pautas nos teatros da rede municipal tenham que buscar o famigerado patrocínio para se sustentarem em cartaz.
A esse derradeiro ato, somam-se a desastrosa administração da Funarte pelo ator Celso Frateschi, que mantém fechados os teatros Glauce Rocha e o Teatro Duse, além de não ter tomado nenhuma providência em relação ao Teatro Dulcina – cedido à Prefeitura e mantido em ruínas; e a ofensiva declaração da Secretária de Cultura do Estado, Adriana Rattes de que não quer cuidar de cupins, e com isso, trata de criar um projeto de privatização dos teatros estaduais, em péssimas condições de manutenção e funcionamento. Frateschi, Adriana Rattes e o Secretário Municipal das Culturas, Ricardo Macieira, os três responsáveis pelas políticas públicas de fomento ao teatro, que sempre tiveram na cidade do Rio de Janeiro seu principal pólo produtor e exportador, formam um trio melancólico, que protagoniza, além da falência dos espaços físicos, a falta de investimentos no setor. A arrogância do Sr. Frateschi cai por água abaixo quando vemos que até hoje as verbas do Prêmio Myrian Muniz de Teatro e Dança, para espetáculos selecionados em junho do ano passado até agora não foram pagos – e o edital prevê que os vencedores têm até o dia 4 de maio para estrearem suas produções. O Sr. Macieira lançou a última edição do Fundo de Amparo ao Teatro (Fate), no fim de 2006, mas as produções vencedoras só começaram a receber as verbas em outubro de 2007, sendo que algumas delas ainda não conseguiram estrear. Quanto ao Governo Estadual... além da intenção de privatizar os teatros, a secretária Adriana Rattes não conseguiu até agora balbuciar uma palavra qualquer que sugerisse alguma coisa parecida com uma política para as artes cênicas...
Mas voltemos ao nosso velório: a situação dos teatros públicos municipais. Essas casas de espetáculos têm uma longa história de bons serviços prestados às artes cênicas – teatro, música, dança, etc. Abrigaram em tempos diferentes temporadas memoráveis; foram palco de nascimento de artistas, grupos e movimentos; celeiros de experimentações estéticas e éticas. A última grande renovação deu-se exatamente com a criação da Rede Municipal de Teatros, em 1993, no primeiro governo Cesar Maia, capitaneada pela então secretária Helena Severo. Reinauguração do Teatro Carlos Gomes, reestruturação do Teatro do Planetário, hoje Teatro Maria Clara Machado, implantação das Lonas Culturais em bairros periféricos, aquisição em forma de comodato dos teatros Delfim, Ziembinski e Glória, aquisição do teatro Café Pequeno (ex-Aurimar Rocha). A esses se somava o Espaço Cultural Sérgio Porto, o único espaço da Prefeitura que funcionava então (é simbólico, que este espaço esteja fechado, vítima de um incêndio e sem previsão para a sua reabertura; mais tarde o Teatro Delfin foi devolvido e o Teatro do Jockey incorporado a Rede). Estava formada então a maior rede de teatros públicos da América Latina.
Para dar vida a esses espaços, havia uma política do município. Criou-se a figura do diretor artístico das salas, com artistas ou grupos contratados responsáveis pela ocupação dos teatros. Com isso, se garantia um perfil da programação, bem como a potencialização da sua utilização. Para tanto, os diretores contavam com verbas para seus projetos e os teatros tinham pessoal e equipamentos terceirizados, dando às salas condições básicas de funcionamento. Junto a essa iniciativa, tivemos ainda o apoio às companhias de dança, a implantação da lei de incentivo do ISS, um edital de apoio à produção, além de vários pequenos apoios financeiros e gráficos concedidos pelo Instituto RioArte. Enfim uma política.
Cercada de polêmicas, como toda iniciativa ousada e nova, o fato é que a Rede Municipal de Teatros tornou-se um exemplo a ser seguido em outros municípios e foi uma alavanca para o desenvolvimento do teatro carioca, principalmente para os grupos e pequenos e médios produtores independentes. Pode-se dizer hoje que a primeira metade da década de 1990 foi o último período em que pudemos perceber o surgimento, na cidade do Rio, de artistas e grupos expressivos no teatro e na dança, como um conjunto – e como é próprio dos movimentos modernos, caracterizados mais pela diversidade do que pela unidade de pensamento e/ou propostas. Mesmo a presença de um ator e autor notável como Miguel Falabella, como gestor da Rede de Teatros, não foi suficiente para alocar verbas necessárias. Sua única ação, o Fate, penou a cada ano para ser posta em prática. Além do mais, excetuando-se o seu primeiro ano de gestão, em nenhum outro foram empenhados os R$ 5 milhões anuais prometidos a ele pelo Prefeito. Dos R$ 20 milhões que Cesar Maia deveria ter destinado ao Fate em quatro anos, apenas R$ 7,5 milhões chegaram ao seu objetivo-fim. Sem incentivo e sem verbas, nada de novo aconteceu nos teatros da Rede, que, como tudo na vida, necessitava de renovação dos seus objetivos e projetos artísticos para acompanhar a dinâmica dos tempos.
Derrotado pela falta de palavra e de compromisso do prefeito e do secretário, educadamente Falabella pediu o seu boné. No seu lugar para o importante cargo de gestor dos teatros municipais... ninguém! E agora, o cancelamento da licitação dos equipamentos e do pessoal de som e luz, alegando-se o superfaturamento dos preços. Ora, o superfaturamento é um problema de gestão: cancele-se a licitação, exonere-se o funcionário responsável pela fraude e proceda-se nova licitação respeitando-se o valor real dos aluguéis. Mas não. As inteligências raras da secretaria das culturas optaram por cancelar os serviços de som e luz para os teatros alegando que repassarão as verbas para que os diretores artísticos administrem segundo a conveniência de cada teatro Está implícita nessa proposta a idéia de que alguns projetos terão som e luz pagos pelo município e outros não, descaracterizando um dos compromissos fundamentais que deveriam nortear os aparelhos culturais da rede pública: a gratuidade das condições técnicas minimamente necessárias para o acontecimento artístico em troca de um ingresso mais acessível à população.
É triste perceber que nessa última gestão, de oito anos, o mesmo Cesar Maia, num movimento esquizofrênico, primou pela desconstrução de tudo de positivo que se conquistou na década passada, no seu primeiro mandato. O fechamento do Instituto RioArte, braço executivo da secretaria, responsável pela gestão dos teatros, pelo incentivo à música, à literatura, às artes plásticas, concessão de bolsas de estudos, entre muitas outras ações, é o exemplo mais evidente – somado agora ao abandono definitivo dos teatros – da vontade do prefeito e de seus subalternos de arruinar com o movimento cultural carioca.

Dudu Sandroni
diretor de teatro

Enviado por Francisco Malta

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