CARTA A BILL GATES

Caro amigo (bilhões de dólares) Bill Gates, recebi seu livro "A Estrada do Futuro". Confesso que fiquei fascinado com seus delírios e prognósticos. Estender aquele cabo de fibra ótica, pelo planeta inteiro. O milagre da intercomunicação pessoal com qualquer vivente do mundo, sem sair de casa. Ou melhor, com a variedade de possibilidades do comunicar, tais como: de dentro do Concorde além da velocidade do som, para o transatlântico; do Pólo Norte para o jardim da casa, a milhares de quilômetros de distância. De qualquer lugar do mundo para a pessoa que você quiser ou imaginar que existe, ou mesmo que não existe nesse caso a realidade virtual dá uma mãozinha. E pronto!!! Estarás se comunicando. Só um louco poderia manter-se uma ilha, isolada no oceano pacífico de sua existência. Tudo bem. Tudo muito lindo. Matemático. Fechadinho. Dá pra saber até o que o papagaio da família estaria fazendo no quarto dos fundos. O micro-computhador de bolso no bolso do paletó roto, como um canivete, daqueles superúteis, de várias lâminas. O suíço verdadeiro. A utilização em qualquer quiosque ou lugar. Presume-se que o vovô, a mamãe, o papai, os filhos, todos vão gostar, e escolher a melhor maneira de lidar com a coisa. Escolha o software que quiser!!! A infovia. A supervia da comunicação/informação em processo de desenvolvimento. Sei que o sistema não tem a finalidade única de sofisticar a comunicação. Pode se comprar, vender, namorar, consultar, lançar idéias, agir e reagir com o tudo que nos rodeia. No entanto alerto amigo para certas mazelas que podem ocorrer, caso o processo venha a ser viabilizado no tempo e no espaço. Primeiro lugar. É de se verificar se existe causa vital a exigir tais avanços. Há necessidade??? Existem usuários extremamente necessitados para o avanço pretendido??? A necessidade ainda é a certeza filosófica a justificar e garantir o sucesso de qualquer empreendimento. No mínimo se constitui no esteio a sustentar os projetos humanos dentro da ordem nathural das coisas. A essência ou a aparência??? A gente se pergunta. E a resposta vem limpa, cristalina: a essência. É Bill, parece que as pretensões estão adentrando a seara neutra do mundo das aparências. O mundo gélido da imagem. O mundo da superestrutura eletrônica. O mundo dos supermecanismos de trabalho e comunicação. Eu ainda quero o abraço pessoal de um amigo. A imagem direta, ao vivo, cara a cara. Não quero ficar olhando as pessoas pelo vídeo, na frieza da distância. Quero o calor da mão amiga, o olho no olho, a verdade da comunicação verbal direta, com todos seus defeitos de estética. O cheiro do suor do amigo, que tem trabalhado muito, e recebido pouco. Os gestos, as luzes invisíveis da conversação, a aura dos corpos, miríades de palavras jogadas ao vento, no papo franco, etc. ... etc. Não podemos Bill, fazer do processo uma coisa antinathural. O ontológico nathural ainda e para sempre deve prevalecer, no que concerne a certas regras e ordens para o avanço do conhecimento. O urso, caro Bill, ainda nos olha ostensivo, da porta da caverna. No conhecimento em estado bruto, na fúria do conhecer, residem elementos importantes. O início que se identifica com o fim. E vice versa. Não se detém um verticalismo no evoluir. A estrada do futuro passa por valas abissais, atropela rochedos e pedregulhos. O caminho não é linear, limpo, tem muitas coisas "poderosas" que o interditam aqui e ali. Não se engane Bill. O conhecimento é cíclico como o tempo, o vento, a chuva, as estações do ano. A comunicação direta, pessoal entre os homens, é nathuralíssima como comer, beber, mijar. Também é automática, sendo a magia que determina ou dá destino a linguagem no tempo e no espaço. Por isso, transcende as barreiras de qualquer tecnologia. Não se pode romper o mecanismo nathural da comunicação. É de se lembrar — caso se instale — o sistema que o lixo também pode chegar muito mais cedo dentro de nossa casa, e em quantidade também maior, já que aquilo que não queremos ver, conhecer, sentir, virá ostensivamente rondar as janelas. Bill gostei do Windows 95. Não precisa mais. Não há mais necessidade Como no direito Bill, uma lei só pode ser válida e útil quando necessária. Bill, tá bom assim. Não quero conhecer o estrangeiro fulano de tal, o japonês Hiroche, e suas idéias sobre os chips de plástico. A vida não é só isso. Afinal, já conseguiste incomensurável agilização de serviços. Sem falar no entretenimento e no pastel da cultura. Teimo em não receber a carga de informações que me vêm de todos os lados, e pouco me interessa. Será que vale a pena, minha alma tão pequena ser atingida assim? O tempo também nos ensina, e quer dar tempo ao tempo, um pouco de cada vez. Não assim, aos borbotões. Tá tudo bem. Vamos devagar Bill. Não quero sentir no vídeo do monitor a mão fria e úmida do alienígena. O planeta está sendo destruído pelas mãos do lucro fácil. A exploração irracional dos recursos nathurais. O desperdício da sociedade ocidental. O lixo. O lixo cobrindo tudo. Necessário ampliar o sistema já existente, no sentido de sua utilização prática, e garantia de qualidade. Já levei três vezes consertar o meu micro este mês. O cabo pode ficar para depois. Aliás, se tudo continuar assim, os miseráveis de um lado e outro do globo, nem precisarão de nós para constatar que para não morrer de fome é preciso roubar, e muitas vezes até matar. Aliás eles nem sabem que a informática já existe. Aqui no Brasil, Bill, por incrível que pareça, não tem mais terra a ser distribuída em reforma agrária. Todas as terras são produtivas. Estamos com um contingente errante de milhões de sem­ terra sem habitação (e sem dólares ou mesmo reais) para assentar, e suprir com um simples teto. Cairá muito bem aquele micro que tu me prometeu. Vou entregar ao MST, movimento dos sem-terra, para jogá-los (os nossos sem terras) na Internet. Já. pensou??? Quem sabe alguma proposta da Sibéria, da Austrália, da China, uma gleba de terras para cada família? Inacreditável né? O Brasil não possui terras para a tão sonhada reforma agrária. Mas aí fora deve ter. Vejo e sinto tuas visões e delírios Bill, chego a acreditar neles. Duro mesmo é minha realidade imediata do sem dólares, sem terra e sem nada, que sequer sabe de tua existência, Bill. Sei que não é por causa deles (os miseráveis) que a ciência, a pesquisa, o avanço tecnológico deve parar. Assim como o foguete não pode deixar de ir ao espaço porque existem pobres no planeta. Sei disso muito bem, Bill. Não se pode conter o carrossel, as engrenagens do progresso, porque temos irmãos pobres, carentes de tudo, alienados, perdidos na tarefa de existir dignamente como nós. É verdade. Todos tem oportunidades. Até de mudar de planeta, se for o caso. Brasileiro é campeão pra negar carona. Surfistas de trem, temos norráu para embarcar em qualquer nave espacial, amanhã ou depois Bill, tá tudo bem. Tua ferramenta preferida é software e não hardware, já deixaste bem claro. O Windows completa tudo o que nos era necessário. Você já fez muitíssimo por nós. Perdoe­-me se fui agressivo. Prometo fazer uma leitura melhor de seu livro (A Estrada do Futuro), já que não o li como deveria. Vai devagar querido amigo. Deixa o cabo para mais tarde. Não vamos sequer incentivar o pessoal. Um dia a gente vai precisar do (cabo) fio da razão que ficou esquecido no tempo e começar tudo de novo. Obrigado. Saudações!!!

Jairo B. Pereira

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