Carta de Hugo von Hiunnthal a Lord Chandos

            Você reclama por não ter recebido, ultimamente, no novo livro de minha autoria. Na verdade, meu prezado amigo, ocorreu algo bastante simpes: deixei de escrever. Não encontro mais a língua para exprimir-me. Sim, ela parece que me abandonou para sempre, assim como as ondas do mar largam uma praia vazia e branca.
            A linguagem despediu-se de mim.
            Meu caso, em resumo, é este: perdi, de uma vez por todas, a capacidade de pensar ou falar sobre qualquer assunto de modo coerente. Termos familiares — alma, honestidade, alegria — ou conversações diárias se me apresentam como bobajário, despeidas de sentido, mentirosas, intoleráveis.
            As palavras não representam mais as coisas, idéias, sentimentos. E vivo num despaisamento completo, só encontrando alguma felicidade em objetos pobres e grosseiros, humilde regador de jardim ou fogueirinhas de pastores quando a noite chega.
            Ao céu estrelado, no qual se apoiaram tantos filósofos para demonstrar a ordem universal do cosmos, prefiro modestos urinóis, lascas de madeiras, velhos cordões de sapato, detritos da civilização industrial em destroços do realismo grotesco.
            Tudo se desfaz para mim, hoje, em partes, as partes se dissovem em outras partes, nada se deixa apreender com um só conceito, frase ou discurso. As palavras isoladas parecem nadar em volta de mim. Coaguladas, transformam-se em olhos que me fitam, rígidos e inquisitoriais. E cravando neles o olhar, parecem redemoinhos que me causam vertigens, girando incessantemente, arrastando-me para os abismos da solidâo, do silêncio e da impotência.
            Acho que virei uma espécie, bastante singular de esquisofrênico inocente, primitivo, naïf.

Uilcon Pereira

Do livro: A Educação pelo fragmento, Editora do Escritor, 1996, SP

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