Carta de Gustave Flaubert a Louise Colet
(Craisset) quarta-feira, 10 h (horas) da noite (26 de agosto de 1846)
É uma atenção doce a que tens de me mandar cada manhã o relato do dia anterior. Par mais uniforme que seja a tua vida sempre tens ão menos algo dela para me eontar. Mas a minha é urn lago, um charco estagnado que nada agita e onde nada surge. Cada dia se parece com a véspera. Posso dizer o que farei daqui a urn mês, daqui a urn ano. E encaro isto não só como sensato, mas como feliz. Assim quase nunea tenho algo a te contar. Não recebo nenhuma visita, não tenho em Rouen nenhum amigo. Nada de fora penetra ate mim. Não há urso branco em seu pedaço de gelo no polo que viva em mais profundo esquecimento da terra. Minha natureza me leva desmesuradamente a isto, e em segundo lugar para chegar aí nisto coloquei Arte. Cavei minha toca e nela permaneço tendo o cuidado que nela se mantenha sempre a mesma temperatura. O que me ensinariam estes tão falados jornais que queres tanto me ver tomar de manha junto com uma fatia de pão com manteiga e uma xícara de café com leite? O que me importa tudo o que eles dizem? Sou pouco curioso pelas notícias, a politica me entedia, o folhetim me envenena. Tudo isto me embrutece ou me irrita. Me falas de urn terremoto em Livorno. Que eu estivesse abrindo a boca sobre isto para deixar escapar frases consagradas em tais situações: "É lamentável! que desastre terrfvel! será possível! oh meu Deus!" isto devolveria a vida aos mortos, a fortuna aos pobres? Há, nisto tudo, urn sentido oculto que não compreendemos e de utilidade superior, sem dúvida, como a chuva e o vento. Não é porque nossos sinos foram quebrados pelo granizo que se deve querer eliminar os temporais. Quem sabe se a ventania que abate urn telhado não dilata uma floresta inteira? Por que é que o vulcão que transtorna uma cidade não fecundaria uma província? Isto é ainda orgulho nosso. Fazemos de nós o centro da natureza, a finalidade da criação e sua razão suprema. Tudo o que não vemos conformar-se a isto nos surpreende, tudo o que nos é oposto nos exaspera. O quanto ouvi, misericórdial O quanto suportei no ano passado dessas magníficas dissertações sobre a tromba d'água de Manville! "Por que isto se deu? Como é possível? Pode-se conceber isto? Sera a eletricidade lá do alto ou a daqui de baixo? Em urn segundo três fabricas derrubadas e 200 homens mortos! Que horror!" E as mesmas pessoas que diziam isto, enquanto falavam iam matando aranhas, esmagando lesmas, ou, só para respirar, talvez absorvessem pela aspirações de suas narinas miríades de átomos animados. (Monville para mim, entendes, foi uma invalidez. Vi isto tudo de muito perto, sobre isto ouvi conversar, dissertar e babar por todo urn inverno, fiquei bêbado!)
Quanto a segunda coisa de que me falas, a proclamação de Schamyl, pode ser curiosa, é verdade. Mas há tantas coisas curiosas neste mundo sobretudo para urn homem que pode dizer como o Angely: "Eu vivo por curiosidade", que não as conteríamos, se devêssemos vê-las todas. Sirn sinto um enjôo profundo pelo jornal, isto é, pelo passageiro, pelo que é importante hoje e pelo que não o será amanhã. Não há insensibilidade nisto. Só que eu simpatiro da mesma forma, talvez melhor, com as misérias desaparecidas dos povos mortos nas quais ninguém pensa hoje, com todos os gritos que eles deram e que não ouvem mais. Não me compadeço mais com o destino das classes operárias atuais do que com os escravos da antiguidade que giravam a mó, mais ou tanto quanto. Não sou mais moderno do que antigo, não mais francês do que chinês, e a idéia de pátria isto é, da obrigação em que nos vemos de viver num pedaço de terra traçado em vermelho ou em azul no mapa e detestar os outros pedaços em verde ou em preto sempre me pareceu estreita, bitollada e de uma estupidez feroz. Sou irmão em Deus de tudo o que vive, da girafa e do crocodilo como do homem, e concidadão de tudo o que habita no grande e guarnecido hotel do universo. Não compreendi teu espanto em relacão a beleza desta praclamação. Quanta a mim, pensa que é porque 1º ele é barbaro, 2º mulçumano e sobretudo fanatico que ele disse coisas belas. A poesia é uma planta livre. Ela cresce onde não é semeada. O poeta não é mais do que botânico paciente que escala as montanhas para ir coIhê-la.
E agora que descarreguei meu coração, pois são várias vezes que voltamos a este assunto que não queres compreender, falemos de nós e beijemo-nos suavemente, longamente, nos dois lábios.
Fizemos ontem e hoje urn lindo passeio; vi ruínas, ruínas amadas de minha juventude, que eu já conhecia, onde eu tinha vindo várias vezes com aqueles que já não vivem. Lembrei deles, e dos outros mortos que nunca conheci e cujos túmulos vazios meus pés pisavam. Gosto sobretudo da vegetação que brota nas ruínas, esta invasão da natureza que logo alcança a obra do homem quando sua mão não está mais aí para defendê-la me faz gozar uma alegria ampla e profunda. A vida vem restabelecer-se sobre a morte, faz brotar a grama nos crânios petrificados, e sobre a pedra em que urn de nós esculpiu seu sonho, reaparece a Eternidade do Princípio em cada florescer dos rávanos silvestres. - Me é doce pensar que servirei um dia para que cresçam as tulipas. Quem sabe? a árvore ao pé do qual me colocarão talvez dê excelentes frutos. Serei talvez urn adubo fantástico, urn guano superior.
Este moleque do Phidias (*) esta completamente preso nos laços da dama loira? Depois de tanto tempo preso o que não deve t e r consumido de filéL Que excelente e boa fndole. Te vi criticar o seu lado flutuante, preensível, maleável. Hoje querias que eu me parecesse com ele, para que eu ceda quando dizes: fica. Te surpeende que eu não tenha tido fraquezas. Mas tive fraquezas sim, fraquezas imensas contigo. Sou eu que sei, porque fui eu que as senti. - No que se refere a estas partidas marcadas antecipadamente e as quais nunea faltei, eu não poderia ter, se não te julgasse superior, contado uma mentira anódlna como se faz nestes casas, fingir que cedia, e conceder as tuas insistências o que eu teria decidido de antemão? Mas não, a partir daquela noite em que me beijaste a testa, jurei a mim mesmo jamais te mentir. É o procedimento mais rude, o mais brutal, talvez, dirás, o menos terno? Mas acho que seria te desprezar agir de outra forma, te aviltar até. Não és feita para ser servida por um amor de falsidades e earetas. Preferiria deixar-te uma cicatriz no rosto do que fazer-te uma careta pelas costas.
Te agradou, pobre anjo, o buquê de festa que te mandei! Não fui eu que tive a idéia de colocar em minha carta estas flores significativas pois eu não conhecia seu sentido simbólico. Foi Du Camp que me ensinou, me aconselhando que o utilizasse. Pensei que esta criancice te divertiria o coração. Divertiu bastante o meu! Sabes que uma coisa que me tocou na tua carta foi esta corrida no bois de Boulogne da qual me falas. Eu mesmo fiquei gelado. Me senti no teu lugar. Me vi, papéis invertidos. E tua criança que te beijava a mãos! Dá-lhe por isto urn beijo par mim. Também lembro sempre deste Born bois de Boulogne. Lembras do nosso primeiro passeio em 30 de julho? Como Henriette dormia nas almofadas! E o suave movimento das molas, e nossas mãos, e nossos olhares mais enlaçados do que elas. Eu via teus olhos brilhando na noite. Meu coração estava cálido e amolecido... Eu bebia com êxtase os longos eflúvios de tua pupila fixada na minha. Quando voltará tudo isto? quem sabe? quem sabe? ohl jamais me acuses de esquecimento, jamais me acuses! Seria uma crueldade infame. - Me ama sempre, pois eu também te amo sem cessar. Adeus, mil beijos no teu lindo colo, nestes seios que ofereces aos meus lábios com urn sorriso tão doce quando dizes: Te agrado? me amas?". Se me agradas! se te amo! Urn surdo que me visse escrever-te o saberia, bastaria que olhasse meu corpo. Adeus de novo, mil amores. Não tenhas medo, cara amiga, recebi a carta em que falas do teu sangue que deve retornar no dia 10.
Carta in "Uma carta de Gustave Flaubert a Louise Colet", Dorothée de Bruchard (tradução e comentário).
Fonte: http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/fragmentos/article/view/4740/4007
Fragmentos; r. DLLE/UFSC, Florianópolis, Nº1, 243-257, Jan./Junh. 1986
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(*) Trata-se do escultor James Pradier