GLAUCOMATOPÉIA [#67]


O DESOCUPADO



SONETO 583

Lamber-lhe as havaianas no solado;
também lamber por cima, descalçadas
apenas com a boca. Ouvir risadas.
A tanto é que forçado fui, vexado.

Forçou-me a tal vexame o mais folgado
vagau da redondeza, que as empadas
do bar, entre um bilhar e umas geladas,
mastiga, engole e cospe para o lado.

Tem mais de vinte e ainda não trabalha.
Estudo, nem pensar. O dia passa
na praça ou no boteco. Usa sandália.

De noite, em meu apê fila a cachaça,
arrota as que comeu, e então se espalha
na sala e me enche a boca, achando graça.

O soneto acima me veio quando lembrei dum cara que morava no meu prédio, não este onde moro, mas no mesmo bairro, defronte à padaria da rua Eça de Queiroz. O sujeito era bem novo (tinha uns dez anos a menos que eu, nos meus trinta), mas não andava enturmado. Quase não saía, talvez porque não tivesse grana, talvez porque não tivesse amigos, ou uma coisa por causa da outra. Ficava o tempo todo zanzando pelo quarteirão, da portaria do prédio à esquina, da esquina para a padoca. Ali batia ponto e papo com outros habituais fazedores de hora e, eventualmente, filava uns comes ou, sobretudo, uns bebes que alguém pagasse. Namorada não tinha, ou melhor, vivia rodeando as vizinhas mais abertas à conversa, e por algum tempo foi visto sentado no jardim com a filha do zelador, mas logo a menina dividiu o banco com o manobrista da garagem, e nosso herói voltou a zanzar com cara de quem não comeu e não gostou.

A mim o que chamava atenção era a sandália havaiana que ele não tirava do pé. Na época eu era bancário e costumava me vestir sobriamente: não se usava mais terno e gravata, mas camisa, calça e sapato tinham que ser sociais. A molecada, por outro lado, exibia na rua suas roupas folgadas e coloridas, seus tênis colossais e chamativos. Mas o cara não acompanhava moda alguma: vestia-se com desleixo, parecia usar sempre a mesma camiseta e o mesmo calção. As havaianas eu tinha certeza de que eram as mesmas. Nunca fui muito atraído por chinelo ou sandália: as botas (especialmente coturnos) e os tênis me sugeriam as cenas tribais de então: hippie ou punk, rockabilly ou skinhead. Sexo e poder marchavam juntos, simbolizados, para mim, nas solas pisando caras, de preferência a minha cara.

Mas se a sandália de dedo não me seduzia, o dedão exposto sim: era mais curto que o segundo artelho, e o pé espalhado e chato, formato que me fazia viajar de volta à meninice, quando fui abusado por moleques de periferia, um dos quais tinha pé assim e me pisou na boca, obrigando-me a lamber, antes que os demais me currassem. A reminiscência, que me perseguiu pelo resto da vida, voltava naqueles momentos em que eu cruzava com o marmanjo no saguão do condomínio ou na calçada, mas ele era tão desligado que nem reparava em meu olhar fixo no chão, fascinado por aquela prancha descalça e apoiada numa palmilha gasta e encardida.

Na verdade ele só aparentava ser sonso, pois bem que me manjava, apesar da minha discrição no relacionamento com os vizinhos. Não que eu não fosse assumido: àquela altura já tinha participado do grupo SOMOS e colaborado no LAMPIÃO, e minha poesia francamente erótica e sadomasoquista circulava impressa. Só que, no prédio como no banco, eu preferia não dar muita bandeira e achava melhor preservar minha privacidade. Sempre que recebi visitas de "amigas" mais "pintosas" ou "fechativas" (como se dizia na gíria camp da época), contudo, lá estava o rapaz de olho, parado como que por acaso na escadaria da entrada, enquanto eu as acompanhava até o portão ou saía junto.

Não tardou para que o gelo se quebrasse. Uma manhã fui xerocar um artigo do LAMPIÃO e ele aguardava, no balcão da papelaria, enquanto o balconista me atendia. Não me perturbei quando o vi ali ao lado, mas não pude disfarçar a olhadela que dei para conferir se aquele pezão calçava as indefectíveis havaianas. Na saída, ele me encarou com aquela expressão de folgado e riu triunfalmente, escancarando os beições, como se tivesse flagrado uma ninfeta tomando sol sem sutiã na piscina do edifício ao lado. Apontou para o tablóide na minha mão e perguntou com forçada intimidade:

— Você lê esse jornal? Não é só bicha que lê isso?

Resolvi dar trela, mas sem perder o cacoete da militância:

— Não só leio como escrevo nele.

— Ah, então você também é?

— Entre outras coisas.

Respondi já me pondo a caminho, para o caso de que ele reagisse com hostilidade: se me desfeiteasse, ficaria falando sozinho. Mas ele passou a caminhar a meu lado, insistindo no papo, e continuei jogando verde:

— E você? Também já leu, não foi?

— Nããão! Só tinha visto na banca! E você escreve o que aí?

— Poesia.

— Poesia?

— De sacanagem.

— Ah! E que tipo de sacanagem?

— Tudo o que você pode imaginar.

— Vem cá: é verdade que todo viado adora chupar rola?

Olhei para os lados, achando que estariam nos ouvindo, mas a calçada não estava muito movimentada e já chegávamos ao prédio. Entramos e segui direto para o sofá do saguão, sentando-me e esperando que ele me imitasse. Não hesitou, interessado que estava na continuidade do diálogo. Fui bem didático e objetivo:

— Nem todo mundo gosta de tudo. Que eu saiba, a maioria dos gays curte chupada e nem todos dão o cu. E tem gay que curte outras coisas, como eu.

— Que outras coisas?

— Chupar pé, por exemplo.

E mirei o olhar no pezão. Ele fez o mesmo, até ergueu a perna cruzada, ostentando as unhas mal cuidadas:

— Sério? Você chuparia um pé de macho?

— Com o maior capricho.

— Mesmo sujo, suado?

— Principalmente.

— Mas só o pé? Mais nada?

— O resto depende.

— Depende do quê?

— Do que eu for mandado fazer.

— E se fosse eu que mandasse?

— Eu chupava seu pé e o que você quisesse.

— Chupava agora?

— Só não chupo aqui porque não quero platéia.

— No seu apê?

— Claro!

Quando ele se levantou percebi o pau duro sob o calção. Subimos e, assim que ele bateu o olho no meu barzinho, esqueceu momentaneamente o tesão, magnetizado pela coleção de decantadores de cristal que se perfilavam na prateleira, cada um contendo uma tonalidade de licor. Claro que ia pedir, mas não esperei e ofereci. Ele se acomodou numa poltrona, servi-lhe o drinque, e dali a pouco, fingindo ou não, o cara estava suficientemente "anestesiado" para, se fosse o caso, esquecer de tudo o que se passaria no apartamento do bancário solitário. Mas não foi o caso, pois ele percebeu que a situação poderia se repetir da forma mais conveniente: ele interfonava e subia quase todo dia, mas já não pela manhã, quando eu me preparava para sair ao trabalho. Ficou combinado que
ele podia me chamar depois das oito da noite, sempre que quisesse, e eu só não o receberia se estivesse muito ocupado ou se tivesse compromisso fora. A partir daí, o cara me freqüentou sem a menor cerimônia e se serviu sozinho de seus drinques, enquanto eu lhe prestava o serviço no pé.

— Tive uma cadelinha que fazia isso mesmo na minha sola!

— E isso? Fazia também?

— Ah, isso não! Cachorro não chupa! Cachorro só fica passando a língua... Faz de novo, engole o dedão! Tá cheirando muito forte?

— Tá.

— Mas é isso que você quer, não é? Então güenta, uai!

Não, ele não era mineiro, era do norte do estado, perto da divisa do Triângulo. Estava morando apenas temporariamente com a avó, mas voltaria dali a meses para sua cidade. Enquanto pôde, se esbaldou na minha poltrona. Como gostava de me ver ajoelhado entre suas coxas! Com que satisfação comandava cada lambida minha em seu caralho torto e sebento! Com que naturalidade apoiava os pés no braço da poltrona, para que eu lhes lavasse a sola chata com a língua! E como esporrava abundantemente, uma porra grossa e ardida, quando o caralho sentia a língua deslizando por baixo da chapeleta! Ao perceber que ele delirava com esse movimento, tratei de repeti-lo com o máximo de suavidade e lentidão, para ouvir o cara murmurando tão baixinho que parecia estar falando de si para si, talvez recapitulando suas próprias fantasias solitárias:

— Chupa gostoso, chupa gostoso! Chupa chulé! Chupa mijo! Chupa, porquinho! Ah! Porquinho!

Fiquei com aquela palavra, porquinho, na cabeça. De vez em quando, na punheta, cochicho comigo essa palavra e gozo feito doido, imaginando que hoje em dia, com esse desemprego todo, deve haver muito mais neguinho desocupado andando de havaiana por aí... Só que nem todos têm pé chato e dedão mais curto.

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:

http://sites.uol.com.br/glaucomattoso

http://sites.uol.com.br/formattoso
 

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