"LETRAS CLÁSSICAS", POR HENRIQUE CAIRUS

Professor Dr., Coordenador do Departamento de Letras Clássicas da UFRJ (Pós-Graduação), ensaísta, poeta, co-editor de CALÍOPE: Presença Clássica, revista do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas e do Dep. de Letras Clássicas da UFRJ. Na Internet, veicula a lista: PGclassicas - Pós-Graduação em Letras Clássicas - UFRJ e tem site pessoal: http://www.geocities.com/henriquecairus/

Coluna da 2 ª quinzena abril
(próxima coluna: 19/5)

Um grego marginal

Creio que poucos que convivem com o meio universitário podem dizer que nunca ouviram algum palestrante falar nos gregos. Não me refiro a um grego específico, como Sófocles ou Demóstenes, refiro-me a esse coletivo mesmo, refiro-me aos “gregos”, assim chamados.

Ouvimos já, penso que muitos de nós, dizerem-se coisas como: “para os gregos, isso era assim”.

Claro que um helenista consideraria imediatamente que faltam a esses “gregos” pelo menos dois adjuntos, um que determine o seu tempo e outro que determine o seu espaço, e, ainda assim o termo “gregos” poderia não satisfazer algum helenista que considerasse adequado o acréscimo de mais algum determinante, como o de ‘génos' ou o de categoria social, por exemplo.

Não desejo, contudo, amofinar minha querida leitora com isso que poderia parecer um preciosismo acadêmico, e espero somente lembrá-la de uma figura que surge nas preleções universitárias como exemplo ou síntese desse coletivo questionável. Refiro-me a figura do filósofo, encarnado ora por Sócrates ora por Platão.

Quando os helenistas não podem separar um homem factual de um personagem historicamente construído, ou sequer podem afirmar se o personagem foi um homem factual, esses estudiosos criam o que eles mesmos chamam de “questão”. Assim, temos a “questão homérica”, que trata dos poemas homéricos: se são de um só autor, de quantos são, de que época, etc.. Temos também a “questão hipocrática”, a “questão teognídea”, o “ problema socrático”. Esse último trata fundamentalmente de tentar discernir que pensamento poderia ser atribuído ao homem Sócrates e o que brotou da genialidade de Platão, do projeto de Aristófanes ou do ideário de Xenofante.

Afastem-me os deuses do desejo de cansá-la, leitora gentil, com essas querelas que tampouco domino, mas posso assegurar que, com elas, não se foi nem tão longe a ponto de ser possível saber exatamente quem foi – em amplo sentido – o homem Sócrates, nem se caminhou tão pouco para que não se pudesse dizer que Sócrates não esteve muito em paz com o establishment políade.

Voltemos, porém, aos nossos “gregos”, que padecem de um plural a custo aceitável, para lembrar o quanto é comum que esse Sócrates, condenado à morte pelos “gregos” seja tão freqüentemente invocado como representante dessa coletividade.

Se não podemos – ou não devemos – pensar em Sócrates sem levar em consideração o mais completo possível feixe de dados históricos que o cerca, também não podemos – ou não devemos – tomá-lo como produto desses dados.

Tal é a delicadeza que nos demanda a natureza de nosso objeto de estudo – esse passado remoto –, que acabamos por ficar sem saber qual o lugar reservado na história a esse Sócrates que alguns de seus contemporâneos condenaram a morte e que outros cultuaram como a um ser divino; que uns declararam ímpio e pervertedor de jovens, e a que outros fizeram questão de completar, dando-lhe obra e cabimento no passado e no presente, ao legar-nos esse insolúvel problema que envolve o lugar da margem no centro e o do centro na margem.


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