FORTUNA CRÍTICA DO LIVRO "O SILÊNCIO DO DELATOR", DE JOSÉ NÊUMANNE

LIVRO RECEBE O PRÊMIO "SENADOR JOSÉ ERMÍRIO DE MORAES" 2005, DA ABL

NOVA: Ronaldo Cagiano

O primeiro texto foi publicado no caderno Fim de Semana, da Gazeta Mercantil, sexta-feira 8 de outubro de 2004, página 3.

O fracasso de uma geração

Meio século de política, sexo e rock and roll

Ipojuca Pontes

Se o leitor quiser perceber de forma racional as causas emocionais que fundamentam o perplexo Brasil do início do Terceiro Milênio, "Silêncio do Delator", de José Nêwmanne Pinto (Girafa Editora, S. Paulo, 2004, 541 pág., R$ 50,00), dá conta da tarefa e, não apenas por isso, se faz livro de leitura obrigatória. Como se fosse escrito com a ponta de um bisturi, o ciclópico romance, que percorre o exato tempo da formação existencial e a afirmação política da geração que ora toma conta do poder, expõe, como nenhuma outra obra de ficção atual, a cabeça e sentimentos dos que vislumbraram a revolução, a utopia e a sede libertária como agentes da transformação da nossa fisionomia social – mas que, ironicamente, na ordem prática das coisas, só consolidou o espetro da violência, da mentira e da frustração que atormenta o cotidiano do país.

Com efeito, numa síntese possível, o romance faz a revisão crítica do comportamento existencial de atores representativos dos chumbados anos 70, depois de lançar luzes sobre a formação de cada um deles nos ilusórios anos 60, para se arremessar, afinal, a partir da ocupação do poder por tais personagens, sobre o círculo do pragmatismo cínico que circunscreve com amarras de ferro o cenário político e social do Brasil contemporâneo.

De fato, o árduo romance, que se inicia envolto pelos ecos tonitruantes da revolução cubana, articula em definitivo o inventário funesto de uma linhagem que atingiu a (i)maturidade nutrida no acervo das mitologias revolucionárias cantadas em prosa e verso por Marx e os Beatles, sob o estimulo das drogas – o festejado nirvana químico. Para decifrar o enigma do impasse caboclo, o autor não labora como de praxe sobre a ação do clássico latifundiário explorador do campesinato ou da luta do operário alienado por força da modernização tecnológica importada pelo empresário vil. Não. Os personagens do Brasil pós-moderno agora são outros. Perfilam, no réquiem, agentes os mais variados, como, por exemplo, o ministro que foi militante radical, o ex-guerrilheiro que se fez milionário com corretagens na bolsa, o professor universitário pródigo em verbalizar conceitos igualitários enquanto se esmera no exercício da pura canalhice, astros endinheirados do rock, artistas traficantes e dependentes, homossexuais, lésbicas, publicitários – a fauna, em suma, politicamente correta que fulgura sobre o Florão da América e que forma, em parte, o (in)consciente do beautiful people nacional.

E é bom que se diga: são todos personagens complexos, intelectualmente sofisticados, psicanalisáveis quando menos, quase sempre eruditos na arte de charlar sobre as transformações sociais, conscientes todos, no cenário latino-americano em que se debatem, da condição de seres universais em vias do malogro. Com tal galeria de tipos e personagens, em meio a caudal de acontecimentos históricos reconhecidamente daninhos, o romance delata o fracasso de uma geração – não por mera coincidência, a geração do autor.

Para levar adiante a insólita narrativa, José Nêumanne coloca um defunto – João Miguel, um professor universitário de caráter no mínimo duvidoso – testemunhando (como o Brás Cubas de Machado de Assis) o próprio velório, em torno do qual se acompanha a ação e reação dos que ocuparam a trajetória existencial do morto, principalmente a sua mulher, Penélope, uma das figuras que escapam parcialmente da mixórdia geral.

Mas a obra de José Newmanne não vive apenas de personagens complexos e metafóricos ou da memorização de acontecimentos basilares que remontam a uma história paralela do país em cinco décadas – ele é, sobretudo, um romance formalmente inventivo, extremamente moderno. Como no caso de "Ulisses", de James Joyce, o leitor deve se munir de um roteiro-chave para melhor situar a leitura, visto que o autor estrutura o romance em planos e vozes distintas, a do morto entre elas, para compartimentar tempo e espaços conflitantes e, com suma inventividade, entrelaçar realidade e fantasia.Vez por outra, o próprio autor interfere na narrativa com comentários para quebrar o envolvimento emocional do relato, rearticulando na obra o célebre expediente do distanciamento crítico do teatro brechtiano – o que coonesta sua inconformidade com a narrativa puramente linear.

"O Silêncio do delator", entretanto, ao contrário do que se possa imaginar, não cultiva o receituário das técnicas artificiais ou os preceitos das metodologias desconstrucionistas, tão ao gosto dos mentores dos cursos universitários de letras. No corpo a corpo que trava para fazer emergir sua obra, o autor, senhor de uma escrita ágil e vibrante, parece acreditar que a ficção romanesca é também o espaço do poético que não prescinde do inteligível - na definição clássica de Stendhal, "um espelho que passeia pela estrada do real". Nela prevalece até mesmo, nas suas múltiplas instâncias, como principio lapidar, o reconhecimento do recuo decantatório dos acontecimentos e situações, fundamental para estabelecimento da boa criação literária.

Como dito acima, "O Silêncio do delator" é o almejado romance do início do século XXI que expõe, como num strip-tease cruento, o inventario de uma geração – justamente a que hoje detém o poder, oficial ou não. Não é tafefa fácil nem pouco ambiciosa. Devemos agradecer ao autor por ter sabido enfrentá-la com coragem, engenho e arte.

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O segundo no sábado 9 de outubro pela Folha de (S. Paulo Ilustrada, pag. 4) e é da lavra do jornalista Walter Fontoura.

Obra lembra século 20 por meio de morto falante

O silêncio do delator

Não é um livro convencional, esse "O silêncio do delator", que José Nêumanne lançou por estes dias no Café Suplicy, em São Paulo.

O personagem principal, João Miguel, já começa o romance morto e dentro do caixão, no seu velório, mas falante e vivaz, prometendo revelar ali mesmo tudo o que estiver ao seu alcance.

Professor universitário, mulherengo e desastrado, João Miguel "vê" desfilarem ao seu lado os companheiros dos primeiros anos da juventude, quase todos frustrados, como ele, por não terem sido capazes de realizar seus sonhos – e muito menos de mudar o mundo, como um dia pretenderam. E promete:

"Agora que já me despi das vaidades humanas, agora que me livrei das censuras, agora que ninguém nem nada mais poderá me atingir, contarei tudo. Tudo o que sei, tudo o que intuí".

Na imobilidade do caixão, em pleno velório, João Miguel recebe e troca opiniões e impressões, discute, responde, repreende e descompõe ou elogia e até declara amor aos que vão levar-lhe o último adeus.

Os personagens dirigem-se ao morto, e ele a eles; no diálogo que travam vai-se tecendo a história. Mas não se revelam pelos nomes. A narração é feita através de sete vozes, que dão um certo ar de coro grego ao texto: "Na Glória!" é a voz que descreve o velório; "Na Paz do Mundo" é a política; "A Vez do Louco" trata da iniciação dos amigos do morto; o sexo está em "Atrás do Muro"; as transgressões ( como drogas ) estão em"Os Pés do Torto"; histórias de personagens paralelos ao grupo, em "O Cais do Porto". "A Voz do Morto" fala por João Miguel, ou vice-versa, naturalmente.

São todos sobreviventes "dos rebeldes anos 60 do século 20", e suas intervenções estão recheadas de referências a quase tudo que foi relevante naqueles anos e despertou o interesse, fez sonhar ou tocou a imaginação do grupo que agora se reúne no velório para despedir o professor João Miguel, mortíssimo mas falando sem parar.

Os Beatles, Jorge Luíz Borges, Lênin, Che Guevara, Sartre, Kennedy, Jorge Amado, Marylin Monroe, John Kennedy, Stalin, Maria della Costa, Hitler, Ray Charles, Charles Chaplin, Martin Luther King, Gabriel Garcia Marques, Milton Nascimento, Burt Lancaster, Glauber Rocha, Alain Delon, Carlos Lacerda e Belchior, entre outros, estão mais e menos na memória coletiva, no imenso, atilado e bem informado diálogo que é "O silêncio do delator".

Na capa, entre a foto de Maria della Costa e os Beatles, há um sujeito de cabelo preto e bigodinho que segundo José Nêumanne o capista, Newton César, supunha ser Sandro Polônio, mas é o tenente Bandeira, nacionalmente famoso no fim dos anos 50 ao ver-se envolvido no rumoroso "crime da Ladeira do Sacopã", no Rio. O tenente Bandeira não aparece no livro, mas não fica mal ali, naquele clima sobrenatural.

O leitor terá talvez a tentação de identificar alguém, ou o próprio autor, em algum personagem. Mas é inútil. Nêumanne não está lá. Marco Antônio, o Coelho, também não tem relação alguma com o líder comunista Marco Antônio Coelho, nem Ricardo Azevedo é um quadro do PT, filho do Clóvis Azevedo.

Nenhum personagem da vida real está retratado no livro, em ação, exceto talvez Pedro Paulo de Sena Madureira, o poeta e editor, cujo poema "Inventário", dedicado a José Neumanne Pinto, vai publicado no fim do volume. "O silêncio do delator" é um livro escrito em Português legível, como era o de Rubem Braga, como é o de José Nêumanne.

( O silêncio do delator, de José Nêumanne Pinto. Editora A Girafa, 544 páginas, R$51 )

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O terceiro saiu no Caderno 2 do Estadão (página D7) do domingo 9 de outubro:

O testamento de uma geração

Ruy Fabiano

Os anos 60 do século XX constituem um século dentro do século. Foram de tal intensidade e abrangência as transformações comportamentais, ideológicas e culturais ali operadas que seus efeitos morais e psicossociais marcaram as gerações seguintes ¾ e continuam em plena vigência, desafiando artistas, pensadores e estudiosos em geral. Foi um século (isto é, uma década) que não acabou ¾ ainda.

Nela, entre outros, desfilam Beatles, Rollings Stones e Bob Dylan; a revolução sexual, o movimento hippie, o culto às drogas e ao psicodélico; a utopia marxista, a Guerra Fria, o assassinato de Kennedy, a Guerra do Vietnã, a revolta estudantil em Paris, o cinema cult/experimental de Godard, Pasolini, Visconti, Fellini, Antonioni, Buñuel etc. Entre (muitas) outras coisas.

No Brasil, a década foi igualmente movimentada: golpe militar, cinema novo, bossa nova (nascida na década anterior, mas consolidada e exportada na dos 60), festivais da canção, músicas de protesto, jovem guarda, tropicalismo, teatro experimental, drogas e barato total, tendo como desfecho trágico, em dezembro de 1968, a edição do AI-5 e o aprofundamento da ditadura militar.

Uma década insepulta a pairar como espectro na memória de um dos séculos mais densos e movimentados da história humana. O Silêncio do Delator , romance do escritor e jornalista paraibano José Nêumanne Pinto, recém-lançado pela Editora A Girafa, propôs-se a inventariar aquela geração. Inventário moral, estético, político-ideológico, espiritual. O desafio não é pequeno, mas pode-se dizer que o autor o enfrentou com categoria ¾ e saiu-se bem.

Conseguiu dar ao texto um ritmo vertiginoso, que se mantém ao longo das suas 544 páginas, recheadas de citações da cultura pop e do universo intelectual da esquerda marxista, como convém a uma década que sonhou simultaneamente com a revolução pelas armas, pelas drogas e pela música, e cujo charme está não no fracasso, mas no glamour com que o protagonizou.

O fio condutor da narrativa é a música. Música Pop. Mais precisamente, a música dos Beatles e de Bob Dylan, extraída dos legendários discos Sergeant Pepper's lonely hearts club band (Beatles) e Bringing it all back home (Bob Dylan). Cada capítulo se refere a uma das faixas desses dois discos. E termina com uma estrofe do belo poema Inventário , de Pedro Paulo de Sena Madureira, dedicado ao autor, que de um de seus versos extraiu o título do romance.

A história se desenvolve em planos temporais distintos e simultâneos. Em 2004, num lugar qualquer do Ocidente (o autor propositalmente não o situa), dá-se o velório do protagonista e narrador, João Miguel, professor universitário e escritor fracassado. Como um Brás Cubas contemporâneo e mais cético ainda que o original, João Miguel narra a história, os sonhos e frustrações de sua patota, cujo nome é uma paródia do legendário disco dos Beatles: a "patota dos sovacões solidários do recruta Pepé". Seu velório é o de sua geração, que sonhou mudar o mundo, mas apenas o virou do avesso.

Os amigos do morto se reencontram no velório e, em torno das lembranças que ele evoca, repassam os sonhos e desventuras da década dos 60. O finado os escuta e intervém em pensamento, com observações e relembranças. Não é ouvido, mas ouve ¾ e cabe-lhe conduzir a narrativa. Nêumanne diz ter concebido essa história há mais de vinte anos, sem conseguir ir além de um esboço no papel, que considerou ruim. Foi no início deste ano, quando assistiu As Invasões Bárbaras , do diretor canadense Denys Arcand, que teve o estalo para fazê-lo. E o fez compulsivamente, em nove meses de frenético labor matinal. O parto deu-se em setembro.

Apesar do tom crítico e desencantado, o romance é uma comovida homenagem àquela década, na evocação de seus poetas, líderes, idéias e ideais. Para contar essa história, Nêumanne recorreu a artifícios formais complexos, que, mesmo sem essa pretensão, inovam a narrativa romanesca brasileira contemporânea.

O romance é contado em sete "vozes", conforme os versos do samba A Voz do Morto , de Caetano Veloso ( Voz do Morto, Pés do Torto, Cais do Porto, Vez do Louco, A Paz do Mundo, Atrás do Muro, Na Glória ). Em cada uma dessas vozes, são contadas as histórias dos personagens da patota, suas lembranças e reflexões. E o corifeu desse coro de narradores é o finado João Miguel ¾ João em homenagem a John Lennon, e Miguel em homenagem a Mikhail Gorbachov, os dois coveiros das duas utopias que embalaram os jovens rebeldes dos anos 60.

A história começa em 1967, quando um personagem-chave da narrativa, Marco Antonio, codinome Coelho, apresenta à "patota dos sovacões solidários" os dois discos que iriam marcar os demais anos da década e se intrometer na seguinte. Coube-lhe também apresentar à turma o LSD, como antes a havia apresentado à utopia marxista.

Coelho, um ser misterioso e intrigante, cujo enigma é decifrado apenas no final do livro, personifica o espírito da década. A cada aparição, abre novos horizontes de reflexão e perplexidade à patota. Coloca-a diante de novos enigmas, mas nem de longe acena-lhes com a solução, até porque não a tem ¾ e nem mesmo sabe se existe uma.

A Geração de 60 buscou Deus onde Ele não estava. E concluiu que o sonho, que nem sequer chegou a ter certeza de haver sonhado, havia acabado. É desse sonho hipotético, que se transmuta em desalento e ceticismo, onde ex-hippies e ex-marxistas acabam funcionários públicos ou operadores do mercado financeiro, que o livro trata.

Não por acaso, o cenário é um velório. E o enredo o testamento moral e existencial de uma geração.

Ruy Fabiano é jornalista

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O quarto saiu na página A11 (Opinião) do Jornal do Brasil da terça-feira, 12 de outubro:

ROMANCE COM TRILHA SONORA

Deonísio da Silva

Escritor

Jamais encontrei entre leitores estrangeiros quem não ficasse deslumbrado com os autores brasileiros que lhes apresento. O mais recente foi o poeta irlandês John Lyons, que trocou Londres, onde se doutorou em literatura, pelo interior de São Paulo, depois de apaixonar-se por uma brasileira que conheceu na Europa.

A cada novo livro, John Lyons exclama: "já foi traduzido?". Ele se desespera com o fato de não termos uma política editorial consistente para traduções. Considera a literatura brasileira uma das melhores do mundo, reconhecimento partilhado com outros experimentados tradutores.

Tenho mais um presente para John Lyons. Desta vez é O Silêncio do Delator (Editora A Girafa, 541 páginas), romance do jornalista José Nêumanne Pinto que, leitor de Machado de Assis, adota ponto de vista semelhante ao de Memórias Póstumas .

Nêumanne arma o velório mais engraçado do mundo, e a narração vai arrebatando o leitor. Não que sejam graças galhofas, não. São graças alcançadas por intermédio desde extraordinário recurso que é a palavra do romancista quando ele sabe manejá-la. E este é o caso. As memórias brotam sem parar, num caudal vertiginoso.

O romance dura o que dura o velório. Cenas antológicas podem ser detectadas em profusão. Algumas delas são simplesmente cinematográficas. É difícil falar em espaço tão exíguo de livro tão bom, alentado, denso e profundo. Mas escolhi esta, que acho emblemática.

Uma menina perdidamente apaixonada por um homem mais velho, não foi para cama com ele, dizendo, quando foi cantada, que queria apenas a amizade dele. Nêumanne sabe como poucos narrar uma boa história, certamente influenciado pela preparação no batente de jornalista que precisa escrever todos os dias. "Você acha possível uma menina como você se envolver com um homem mais velho?" "Como se envolver? Eu estou envolvida com você". "Não, quero dizer sexualmente". "Não somos apenas bons amigos?" "Estou perguntando se poderíamos não ser." "Para seu governo, eu já me apaixonei por um homem mais velho. Já tive vontade de ir para a cama com ele, mas não fui. Mas você vai para o túmulo sem saber quem foi". "Pobre de mim", ele diz.

No enterro do professor universitário João Miguel, o protagonista silencioso do velório, dá-se algo surrealista. No caixão, o morto segue acompanhado de Coelho, personagem impagável. E este diálogo brota numa cena que bem merece fechar o romance. Entre a pá de cal e uma rosa vermelha jogada sobre o caixão, eis o que acontece:

"Caía esse último dia, mas todos os presentes viram muito bem o fulgor boreal da pele branca da moça que se despiu rapidamente, jogando blusa, saia, sapatos e meias na grama. Quando tirou a calcinha preta e a lançou sobre o caixão meio coberto de terra, seus pêlos públicos refletiam os últimos raios do sol, o fulgor do dia extinto. Fazia-se tarde. Era apenas o fim".

O romance retoma o contexto dos anos sessenta, a década que mudou tudo, fechando um memorial de reflexões no velório de um dos membros da patota de adolescentes que, quarenta anos depois, relembram os já célebres fracassos daquela geração.

Em perfeita homologia com o Brasil contemporâneo, o romance de Nêumanne deu prosa fascinante ao constatado pela síntese poética de Pedro Paulo de Sena Madureira em Vítimas da Luz: "Temos saudade?/ Não. Temos raiva./ Erramos tudo/ e confessamos./ Confundimos as trevas,/ somos pedras em guerra./ Todas as estradas nos desgarram,/os abismos nos reconduzem".

Os Beatles e Bob Dylancomparecem à narrativa para dar-lhe silenciosa trilha sonora.

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Zé vem aí!

Martinho Moreira Franco

Falta acertar a data, mas José Nêumanne Pinto virá a João Pessoa lançar o seu título mais recente, O Silêncio do Delator, editado pela Girafa, de São Paulo. O livro tem 541 páginas e figura no site de busca Glooge com um número ainda maior de registros. Periga figurar no Guinness Book como obra literária de autor paraibano mais citada na internet.

Bem merecido, segundo quem já devorou o volume, a exemplo de Ipojuca Pontes, que escreveu bela resenha para o suplemento de cultura do jornal Gazeta Mercantil, do qual é habitual colaborador. Como a coluna é suspeita com relação a Ipojuca, segue trecho da resenha de Affonso Romano de Sant'Anna para o Prosa & Verso de O Globo:

"Quem viveu os míticos anos 60 vai ler com prazer 'O silêncio do delator', de José Nêumanne. Usando a técnica de fragmentos e fazendo falar um narrador já morto, de maneira leve e irônica refaz uma época que outros trataram apenas pateticamente. No meio dessa ficção que se faz hoje cheia de balas, assassinatos, perversões e morbidez, chega a ser um alívio ler esse livro. É como ouvir uma lépida canção de bossa nova depois de um tango pesado.

"Lembram-se do filme 'Invasões bárbaras', de Denys Arcand, aliás mencionado no livro? É o que há de mais próximo para lhes passar a idéia do livro de Nêumanne que realizou, de modo original, aquilo que tantos tentaram - 'o romance de minha geração"'.

Que venha logo o Zé!

 

(O Norte, João Pessoa, Domingo 14 de novembro de 2004)

 

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WILSON MARTINS
A geração perdida

Reunindo os "remanescentes dos anos 60" no velório de um amigo, José Nêumanne Pinto inovou o romance contemporâneo tanto na temática quanto nas técnicas narrativas (O Silêncio do Delator. São Paulo: A Girafa, 2004).

É a história intelectual e sentimental de uma geração, pontilhada no ritmo da ação pela música e, sobretudo, pelas letras dos Beatles e de Bob Dylan: "Vista aqui do caixão", diz "a voz do morto", narrador complementar e crítico do autor, "posta em contraste com os círculos espalhados pela sala [...] de viúvas de Elvis Presley e nostálgicos de John Lennon, de fãs de carteirinha de Mick Jagger e saudosos de Jim Morrison, ela tem um viço que salta aos olhos e atinge o plexo solar como um soco de Mike Tyson - nós, da geração de Cassius Marcellus Clay, ou melhor Muhammad Ali; nós, que vimos com um pouco de preconceito o filme de Hollywood com o trânsfuga Mikhail Barishnikov, meu outro xará russo, pensando que aquilo era sobretudo o desperdício de um talento, nós que gostávamos das tiras de Mafalda e Charlie Brown. Pois é: esse viço evidente, esse jeitinho de flor beijada pelo orvalho, esse ar de sereno de madrugada não combinam com este ambiente, nada têm a ver com a morte".

É também o romance das ilusões perdidas, matéria privilegiada dos grandes romances, "velório de uma geração inteira, o sepultamento do sonho desta turma de gente bem-intencionada, mas que não soube cuidar direito das próprias intenções, por melhores que fossem. Aqui não jaz meu corpo apodrecido pelo câncer. Aqui jazem, de certa forma, ideais que ele abrigou e expôs, burilou e perdeu, ao longo da vida. Aqui jazem algumas ilusões, espremidas entre as flores neste caixão". Pouco importam, a essa altura, as racionalizações compensatórias a que o morto se entrega: as vitórias e sucessos posteriores dos personagens no plano mundano apenas encobrem o malogro essencial que os acompanha como um remorso implacável. Eram todos vitoriosos - à custa de sua autenticidade profunda. Em brilhante derrota, tinha conquistado o mundo, mas perdido a alma.
Eram agora "o publicitário famoso, o cantor de sucesso, o burocrata aplicado, a historiadora persistente, a psicanalista analisada, todos enfim, até aquele que poderia ter estado ali, mas ninguém cumprimentou nem por alguém foi cumprimentado, embora alguém pudesse tê-lo notado". Mas, todos vencidos da vida, segundo Eça de Queiroz, em passagem conhecida, definiu um desses grupos. Dominando a complexidade da intriga e a estruturação cronológica (exigindo, como é natural, ativa participação do leitor), José Nêumanne Pinto assume o seu lugar entre os mestres do romance contemporâneo, tanto mais que tudo resulta de rigorosa planificação. Percebe-se que "a voz do morto" é, na verdade, um desdobramento do autor, propondo os esclarecimentos necessários para poder
acompanhá-lo, enquanto simultaneamente toma consciência do romance como obra de arte literária, história mental da segunda metade do século 20, em torno do personagem que "abandona a mulher (que conheceu na adolescência) com os filhos e a amante casada, para arriscar um segundo casamento com a primeira paixão da adolescência [...]. Sua primeira idéia era fazer uma abordagem joyciana do texto ... mas o resultado final ficou tão ruim, a história se perdia em tantos malabarismos que você resolveu desistir".

De fato, a partir de Joyce, o romance não pode pretender que Joyce não existiu, mas o romancista autêntico não se dispõe a imitá-lo servilmente, mas antes a prosseguir nas incontáveis direções que sugeriu. Um dos sinais possíveis dessa emancipação genética e o abandono da narrativa linear e progressiva em favor da composição circular, própria da civilização eletrônica (Marshall McLuhan tem mais razão e viu mais longe do que imaginam os críticos superficiais). Cedendo à vaidade inocente de nos fazer perceber o rigoroso planejamento da intriga - diferenciando-se dos experimentalismos arbitrários em que tantos se comprazem - o autor mais uma vez esclarece pela "voz do morto": "eu bem que desconfiava que sua tática de querer fazer tudo de uma vez ... tinha tudo para malograr. [...] O problema é que você foi espalhando migalhas no caminho da floresta e os passarinhos se fartaram, agora você não tem pistas para voltar".

No começo, diz o autor em confissão transposta para a "voz do morto": "Lembra-se de quando começou este projeto de traçar um inventário de sua geração num romance-enciclopédia? Pois é, no começo deste relato, no começo dessa delação, você o situou em 1984. Primeiro, você tentou escrever sobre um cara que abandona a mulher, amiga de infância, e a amante, que não tinha nenhuma relação com sua história de vida" – romance convencional que, como se vê, nada acrescentaria ao romance convencional. Contudo, Joyce havia existido, tornando obsoletos os romances convencionais ... fossem quais fossem as suas qualidades intrínsecas enquanto romances. Em 1922 (ano prodigioso!), ele inaugurava o século 20 literário, e o século 20 literário passou a existir num mundo que, além dele, era mentalmente configurado pelo cinema e por Bob Dylan, pelos Beatles e por tudo que se incorporou à genética das idéias e dos sentimentos. Nisso estava, justamente, o roteiro virtual do romance moderno, pós-balzaquiano com tudo o que significava, isto é, o século 19 com russos e ingleses, franceses e italianos, portugueses e brasileiros ...
As ironias da história transfiguraram os jovens revolucionários dos anos de 1960 (guiados, é preciso dizê-lo, pela idéia mística, não realista, da revolução), em conservadores desenganados, sem repudiar, bem entendido, a aventura heróica que haviam vivido. Por esses processos, o autor transmite o caráter caótico daqueles tempos (como todos os tempos), condicionado, entretanto, por sua própria lógica interna. História retrospectiva que introduz coerência no passado, enquanto a atualidade dinâmica, no momento em que é vivida, é sempre movida por suas "contradições internas" como diria um esquerdista de manual. Ou a "voz do morto", exprimindo as inquietações do autor: "este romance está virando um samba de crioulo doido. Primeiramente porque se já não tinha um espaço definido, agora também se perde no tempo [...] se tinha um assunto central, o inventário de uma geração de repente, sem aviso nenhum ao leitor incauto, saltou para temas que não lhe dizem respeito e que aparentemente com nada se conectam".

O que, precisamente, é a grande qualidade deste romance como romance.
(Gazeta do Povo 22/11-segunda-feira -Caderno G, página 4)

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O SILÊNCIO DO DELATOR: LIVRO DE UMA GERAÇÃO

Sérgio de Castro Pinto

Se me perguntassem o que “O Silêncio do delator”, de José Nêumanne, tem de “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, eu responderia: o fato de, postumamente, um personagem discorrer sobre o passado e o presente, além de, bem ao gosto do bruxo de Cosme Velho, e como se fora um dos alter egos do narrador, interferir na prosa deste de modo a apontar-lhe os excessos, as redundâncias, enfim, as deficiências de sua escrita. Quer dizer, se Machado de Assis estabelecia um diálogo com o leitor a respeito dos seus mecanismos de criação, o personagem João Miguel provoca o narrador, desafia-o, instiga-o, na medida em que questiona o enredo, a intriga ficcional, como também a linguagem que serve de lastro, de sustentação ao romance. Isso sem contar que, coincidentemente ou não, Nêumanne tende a abolir a paisagem no seu livro, ao mesmo tempo em que as suas personagens vivem entre quatro paredes. Ou seja, “O Silêncio do delator” é um romance urbano cujas personagens, paradoxalmente, não saem às ruas, no que também lembram os “claustrofóbicos” viventes machadianos.

Mas isso não quer dizer que Nêumanne seja um epígono do autor carioca, pois, na verdade, ele imprime ao seu texto o sinete de uma individualidade já reconhecida, inclusive, por Wilson Martins, para quem esse paraibano de Uiraúna conseguiu a proeza de inovar o romance brasileiro.

O certo mesmo é que “O Silêncio do delator” presta um tributo àqueles com os quais José Nêumanne possui afinidades eletivas desde sempre. Ou desde quando, adolescente míope de Campina Grande, já enxergava longe. Daí, a homenagem a Machado, a Bob Dylan, aos Beatles e a muitos filmes e textos com os quais dialoga no plano da intertextualidade, da metalinguagem e da paródia.

Em suma, nesse livro convivem, harmoniosamente, o ensaio, a ficção e a poesia, embora os mais preconceituosos ainda hoje delimitem os gêneros literários em compartimentos estanques, quando a diluição deles não exclui, necessariamente, a literariedade de uma obra. Literariedade, aliás, que não falta ao “Silêncio do delator”, livro no qual Nêumanne se vale do seu temperamento eclético, ubíquo, para transitar, com extrema desenvoltura e brilhantismo, do cinema para a música ou desta para as artes plásticas e ainda para a literatura. E aqui convém lembrar que Nêumanne não é benevolente com a geração a que pertenceu: a dos tumultuados anos 60. Antes pelo contrário, pois ele a inventaria sem concessões de qualquer espécie, como o fez – claro que guardadas as devidíssimas proporções – Mário de Andrade quando registrou os 25 anos da Semana de Arte Moderna.

Enfim, sem jamais perder a ternura, José Nêumanne, mais do que expor, escarafuncha as feridas ainda abertas da geração 60. E o faz a partir de “Inventário”, poema de Pedro Paulo de Sena Madureira com cujos versos ele também arremata os vinte e cinco capítulos que compõem este excelente romance recém-lançado pela Girafa Editora.

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O RUIDOSO SILÊNCIO DE UMA GERAÇÃO

Sinval Medina, jornalista e escritor

O silêncio do delator , romance, José Nêumanne, A Girafa Editora, São Paulo, 2004.

Ao contrário do que possa parecer, a morte do personagem principal na primeira página de um romance não constitui motivo de frustração para o leitor. Na verdade, a entrada na história pela porta dos fundos, desde que guiada com habilidade pelo autor, costuma ampliar e enriquecer o universo diegético.

A pergunta que move as narrativas convencionais costuma ser: “o que acontece depois?” Ou seja, a trama procura mostrar os caminhos que conduziram o protagonista à situação limite, ao momento decisivo de sua vida. Alguns autores, como é o caso de José Nêumanne em O silêncio do delator, preferem inverter os termos da equação. Em vez de deixar no ar o que poderia ser um grande mistério, entregam-no de barato nas frases iniciais, partindo daí para explorar a complexa malha de relações (sempre incertas e conflitantes) de que se tece a representação ficcional do destino humano. Mais que isso, na melhor tradição machadiana, Nêumanne dá voz ao morto, incumbindo-o de contar a própria história. Ou pelo menos parte dela. Porque, diferentemente de Brás Cubas, o defunto de O silêncio do delator não tem poderes absolutos sobre a narrativa. O professor João Miguel, no silêncio do seu ataúde, será apenas uma das vozes soantes na bem afinada polifonia que compõem esse caleidoscópico romance.

Ao longo de quase 550 páginas, valendo-se dos mais variados e surpreendentes ângulos, Nêumanne enfoca o drama (a tragédia?) da geração que irrompe no palco do café-concerto Brasil a partir dos anos 60. Uma época frenética, turbinada por utopias revolucionárias, desvarios da droga, embalos do rock-and-roll, desejos de paz e amor, ressacas da liberação sexual, tudo isso levedado pelo intragável fermento da repressão política. Retratar essa geração é tarefa hercúlea, da qual Nêumanne se desincumbe com galhardia. De fato, O silêncio do delator é dos primeiros romances brasileiros a enfrentar de peito aberto tal desafio. Não que o tema seja virgem em nossa literatura. Muitos e bons livros foram escritos sobre os loucos anos sessenta e setenta. Mas os autores que antes trilharam tal caminho, de modo geral o fizeram com perspectiva memorialística. Desse viés não escapa nem mesmo o notável À mão esquerda, de Fausto Wolf.

Não é o caso de Nêumanne, que prefere a ficção sem peias, ou melhor, o romance em estado puro para dar sustentação ao ousado projeto que realiza com marcada competência. Uma escolha de quem conhece o ofício. De fato, por sua abrangência e plasticidade, o gênero seria o único instrumento literário capaz de dar conta do mar de histórias pessoais (com todas as referências e ressonâncias que elas trazem em seu bojo) que o autor coloca em cena em O silêncio do delator.

Nascido do cruzamento da épica clássica com a narrativa popular medieval, o romance se afirma, a partir da segunda metade do século XVIII, como a grande expressão literária da modernidade ocidental. Produto das dramáticas transformações que se seguem à derrocada do ancien régime , o gênero será, na expressão de Balzac, “a maneira de contar a história social através dos acontecimentos particulares”. É claro que, com o passar do tempo, outras dimensões técnicas, estéticas e temáticas se agregam à narrativa em prosa. Autores como Proust, Joyce e Garcia Marquez (só para citar os mais óbvios) ampliam e elevam o registro romanesco, desbravando novas e infinitas fronteiras, sem contudo aluir as bases de uma expressão cultural que constitui o espelho, ou melhor dizendo, o prisma no qual se refrata a sociedade contemporânea. Posto de outra forma, por mais que certos teóricos se aferrem em negar qualidades artísticas ao caráter documental e muralista que o caracteriza, o romance, segue sendo o mais versátil instrumento de observação e reflexão sobre a realidade (e a irrealidade) social nos últimos dois ou três séculos da História do Ocidente. A título de ilustração, valho-me da noção corrente de que nenhum estudo sério sobre a sociedade brasileira no Segundo Império pode prescindir da leitura atenta da obra de Machado de Assis.

É preciso lembrar dessas coisas (que muitos teimam em esquecer) ao mergulhar no texto de José Nêumanne. Para já, trata-se de uma viagem prazerosa. O livro é daqueles que agarra o leitor pela perna da primeira à última página: tem história, tem intriga, tem fantasia, tem personagens redondos, tem lances surpreendentes – enfim, tem tudo o que se exige da boa ficção. Mas vai além disso. O silêncio do delator se enquadra naquela categoria que, lembrando mais uma vez Balzac, costumo chamar de romance de ilusões perdidas. Inventário de uma geração soterrada pelo colapso das vigas mestras do pensamento moderno, ou seja, a crença no progesso, a fé na razão, o fim da utopia igualitária, o romance retraça a trajetória dos sobreviventes do cataclisma.

A patota dos sovacões solidários do recruta Pepé, jovens idealistas que, na década de sessenta partilham a fé de transformar o mundo, se reencontra no velório do professor João Miguel para, diante do féretro (e com a ativa participação do morto) questionar-se sobre o que fizeram de suas vidas, ou melhor, o que a vida fez com eles. Aí estão, agora transformados em figuras, digamos, importantes: um é ministro de estado, outro é ídolo da música pop, um terceiro é publicitário de sucesso – todos no topo da pirâmide. Todos crivados de dúvidas, culpas e angústias existenciais.

Cito, a título ilustrativo, apenas alguns personagens da caleidoscópica galeria criada por Nêumanne. Na verdade, são tantos os ângulos oferecidos à análise por O silêncio do delator que se torna difícil explorar toda a sua riqueza numa simples resenha informativa. Julgo importante, porém, destacar a competência da construção do livro. Ciente da complexidade do tema que tem nas mãos, Nêumanne faz escolhas técnicas meticulosas, como, por exemplo, valer-se da continuidade de tempo (a duração do velório) e da unidade de espaço (a capela mortuária) como forças centrípetas que impedem o estilhaçamento da narrativa. Presos a esse frágil porém seguro fio condutor, penetramos aos poucos nas múltiplas camadas de uma trama que evolui com intensidade cinematográfica. Diálogos, memórias, reflexões dos personagens permitem que o passado vá se abrindo, de modo claro, mas sempre enigmático diante dos nossos olhos.

Destaco ainda a consciência com que o autor pratica a “poética do romance”, teorizada pelo crítico russo Mikhail Bakhtin (1). Para uso pessoal, interpreto a noção de Bakhtin da seguinte forma: o poeta lírico, o fazedor de versos, fala de si, dos próprios sentimentos; o romancista fala dos outros, reproduz sentimentos alheios. A consequência disso, no tocante à linguagem, é crucial: o poeta, ao escrever, procura a metáfora, a significação pela imagem, a palavra estética; já o romancista busca a metonímia, a significação pela contigüidade, a palavra adequada. Posto de outra forma, o poeta é o virtuoso, o concertista, o spalla da orquestra; já o romancista é o maestro. Sua função é harmonizar sons. Ou dar coerência e ressonância às vozes que emergem da história que ele conta. Nesse sentido, ao optar por uma linguagem que ele próprio define como “de grau zero”, Nêumanne se encontra com a melhor tradição romanesca. Age como o técnico de futebol que sabe tirar o máximo de seus craques. Ou seja, pratica uma escritura sem rebarbas, sem esteticismo, perfeitamente adequada ao ambicioso projeto ficcional a que se propõe.

Finalmente, não poderia passar sem registro a oportunidade na escolha do tema. De fato, O silêncio do delator , além de seus méritos literários, é um corajoso exercício crítico sobre a condição brasileira. Houve tempo em que parte da nossa “inteligência” julgava impossível produzir um pensamento filosófico brasileiro porque só se podia filosofar em alemão. Hoje, há quem julgue que temas nossos, especialmente temas políticos, não rendem bons romances. Daí a presença constante, nas primeiras páginas dos cadernos culturais e nos catálogos de certas editoras, de romancistas nacionais refugiados em Budapeste, Berkeley, Belaggio e até na Mongólia. Autores estrangeiros (nada contra eles), escrevendo com paixão sobre seus países e sua cultura, recebem aplausos entusiásticos. Já os escribas tupiniquins que tentam expressar nossa realidade em suas narrativas, costumam enfrentar narizes torcidos, esgares de desprezo e silêncio sepulcral. Será que só se faz literatura de qualidade lá fora? Ou parte da mídia e da academia continua vítima do complexo de vira-lata de que falava Nélson Rodrigues?

Na direção oposta, me vem à lembrança um precioso texto de Octavio Ianni em que o grande pensador recentemente desaparecido ensina: “A nação, em seus diferentes e múltiplos aspectos, pode ser vista como uma longa narrativa. Uma narrativa a muitas vozes, harmônicas e dissonantes, dialogando e polemizando em diferentes entonações”. Essas vozes representam, segundo Ianni, um esforço para traçar as múltiplas características da formação e transformação da sociedade nacional. E se expressam por meio do ensaio, da monografia, do conto, do romance, da música, das artes plásticas. Convergentes ou centrífugas, “cada uma e todas traçam e retraçam imagens, estruturas, figuras e figurações do que foi, tem sido, ou poderia ser a sociedade brasileira ao longo da geografia e da história” (2).

Ainda bem que autores como José Nêumanne e obras como O silêncio do delator estão aí para reafirmar que o Brasil sabe narrar-se como nação, e também para mostrar que os naturais da Terra de Pindorama, com todas as suas contradições, impasses, descaminhos e surpresas, continuam sendo tema inesgotável de excelente literatura.


Notas

•  – BAKHTIN, Mikhail. Questões de estética e literatura – a teoria do romance. Ed. Hucitec, São Paulo, 1988.
•  – IANNI, Octávio. Nação e narração. In Antônio Cândido, pensamento e militância . Org.Flavio Aguiar. Ed.Humanitas, São Paulo, 1999.

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Um mestre do romance

José Nêumanne é a verve mais candente do jornalismo brasileiro. Sua capacidade de construir artefatos verbais na imprensa diária não tem paralelo entre nós. Agora Nêumanne coloca essa capacidade inusual a serviço da literatura de ficção. Poderia ter falhado e se afogado no discurso normativo das redações. Não só isso não aconteceu como Nêumanne escreveu um romance que deve marcar 2004 como “o ano de O silêncio do delator ”, tal como Canaã marcou 1902 e Cabeça de Papel marcou 1977. O silêncio é o melhor romance de sátira desde Paulo Francis.

Romance-síntese, O silêncio consegue a proeza de juntar as pontas do último meio século lançando uma espécie de arco voltaico que se estende do fim da II Grande Guerra à queda das Torres Gêmeas. E com isso faz o inventário da estética e da política, da utopia e do desencanto desse conturbado e fascinante período, traçando um vivo retrato de uma geração que se queria iconoclasta e terminou conformista. Com a ação fixada no início do século XXI, os personagens recuam no tempo e purgam sobretudo o sonho político-cultural da década de 60, de onde muitos emergiram como “revolucionários” para se transformar nos “conservadores desenganados” de hoje; e, embora Nêumanne não o diga, alguns deles chegaram ao poder.

Nada melhor que um morto para dizer as verdades que os vivos relutam em admitir. O protagonista do romance, tal como o Brás Cubas das machadianas memórias póstumas, é quem dita o andamento da narrativa. Outras seis vozes fazem contraponto a essa voz que já nada tem a esconder. Sem pretender inovar na frase, sempre fluente e rítmica, Nêumanne inova entretanto na estrutura narrativa, que é circular. Tem-se então um romance de linguagem madura, que exige do leitor participação ativa e um nível de informação cultural que ultrapassa a mediania.

Nêumanne coloca-se na linha dos grandes narradores caudalosos, cujo estilo necessita de espaço e que, entretanto, nunca pecam por excesso de palavras. A isto se chama controle da linha narrativa, detalhe logo ressaltado por Wilson Martins, o principal crítico brasileiro há bem já trinta anos: “Dominando a complexidade da intriga e a estruturação cronológica, José Nêumanne assume o seu lugar entre os mestres do romance contemporâneo, tanto mais que tudo [em seu romance] resulta de rigorosa planificação”. (Eustáquio Gomes)

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Clique aqui para ler o poema de Ronaldo da Cunha Lima, após leitura da presente obra de José Nêumanne

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O Silêncio do Delator
José Alcides Pinto

© Diário do Nordeste, Especial para o Caderno 3, Fortaleza, 19 de março de 2005  

Achamos por bem transcrever, logo de saída, o trecho que segue, como inscrição ou advertência, ou o que mais for de O Silêncio do Delator (São Paulo, a Girafa Editora, 2004). Aqui, nestas breves palavras, está expresso o sentido do romance de José Nêumanne: Jornalismo literário? Na verdade, um romance pleno de conflitos e confissões, de vivências que se inscrevem, com muita propriedade, na História e na Memorialística: “Romance e inventário de amor e desamor, aventura e desventura, ilusões e desilusões, encantos e desencantos sobre sexo, política, drogas, moda, arte pop e rock and roll, em sete vozes que ressoam canções dos Beatles, Bob Dylan, Caetano Veloso, Belchior e mais “Um poema de Pedro Paulo de Sena Madureira”.

           José Nêumanne se propõe (e consegue) uma ruptura na linguagem, forma, estrutura, técnica da ficção tradicional. A profusão de elementos conflitantes que se digladiam tornou a obra polissêmica e substantiva. E é um desafio até mesmo para os leitores identificados com a modernidade literária da ficção de nossos dias. Mas como classificar O silêncio do delator, levando-se em consideração o realismo da narrativa? Tempestuoso, agressivo, prosaico, irônico, onde não falta nem mesmo um toque de permissividade, ao qual se juntam ambições políticas, delírios, frustrações, terror e medo desenhados num só painel, claro e confuso, pelos instintos humanos e pela angústia existencial de que nos falava Camus em suas conferências e ensaios críticos sobre o destino do homem e os mistérios da alma.

          A investida mais radical e audaciosa que tivemos na ficção, foi a do “noveau roman”, com Michel Butor, Alain Robbe-Griliet e Nathalie Sarraute. Não obstante, me parece que as experiências do autor solitário é o que mais conta, deixando de lado o modismo dos movimentos literários e das escolas. Nessa vertente podemos citar, entre pouquíssimos outros, Raduan Nassar, com seu belo romance Lavoura Arcaica. Mas esse é um autor raro, com uma obra sempre rara.

          O silêncio do delator é um livro que contesta, advoga, questiona problemas e princípios que nos tocam de perto nosso interesse pelo drama humano que levanta em nosso espírito. O que é a vida? O que é a morte? Serão duas coisas conjugadas? As duas faces da mesma moeda? O sim e o não, o que existe e o que não existe? Nesse sentido, seu romance deixa de ser direto, objetivo, linear, e ganha foros de profundidade, por vezes de natureza metafísica nas relembranças que ocorrem à memória.

         Estamos, queiramos ou não, atrelados ao caos que a todos atinge: pelo pecado, pelas circunstâncias, talvez pelo destino. São mais ou menos estes os temas, os assuntos mais dramáticos, das histórias deste romance em que há um pouco de tudo: assédio, vício, delicadeza, ironia, heroísmo e amor. É este um livro de intertextos que se aproximam da realidade vivida pela inquietude do dia-a-dia. Essa inquietude e essa avalanche nos toma de súbito como um furacão e nos atira ao nada que somos e subverte a ordem natural das coisas em seu clima quase profético.

          Mas nem tudo está perdido, fica em algumas passagens um saldo positivo na esperança e na alegria que apesar de tudo José Nêumanne passa virtuosamente para seus leitores. As fantasias não desertaram de todo do espectro do livro. O poeta, o bom poeta que ele é, frui e refrui na maré de bons augúrios. Assim também se apresenta sua ficção em toda a grandeza de seus lances ambíguos, desconcertantes e dramáticos.

O silêncio do delator é um texto feliz, rico pela sutil plasticidade da linguagem, estilo muito pessoal do autor, de que se nutre em sua escritura em seus recursos éticos e estéticos sob os vários aspectos de sua criatividade. E por esses atributos José Nêumanne nos liberta das convenções sociais, das limitações e costumes que a tradição e a sociedade nos legou. Fica-nos, ainda, a lição de que o homem nunca é demais e que em qualquer parte é um pedaço do chão, e nunca perde sua identidade nem seu sentimento, pois a ele está confiado o destino do homem.

        Desse acerto e ambivalência é feita a natureza dos personagens de Nêumanne. O silêncio do delator por vezes lembra uma tese. Tem algo de profético na ordem e na desordem que regem os conflitos humanos. Não podemos dizer que ele se aproxima de Lins do Rego ou Graciliano Ramos, por exemplo, para citar apenas dois de nossos grandes escritores da atualidade. Não é um texto de natureza psicológica nem introspec-tiva. Podia lembrar “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (o morto contando sua história) mas está tão distante deste como Canópus da Terra. Não há a menor aproximação. Tampouco se identifica com “Primo Basílio”, que Machado quase o copia por inteiro.

          A linguagem de Nêumanne é realista e direta. Um pouco de Lima Barreto, talvez de Cony, permeie sua obra. Cony é um profissional de imprensa e um grande escritor, ligado a pesquisa histórica e ao jornalismo. A experiência dos dois na literatura tira resultados os mais surpreendentes.

          Estamos chegando às últimas páginas do livro de Nêumanne. Atrás deixamos os movimentos de vanguarda na canção, os acontecimentos históricos mais marcantes e até mesmo os corriqueiros ditados pela voz do morto. Sua glória! Tudo e todos fazem parte do mural da vida.

          “Boa noite”. E foda-se. Nêumanne não tem a quem prestar contas e nem dar satisfações a ninguém. A voz do morto e sua “glória” é uma seqüência de significados significantes. A ironia aquece, neste romance agônico, o perfil do morto e sua visão onírica: “Liga não, mãe. Eu só morri.”

          Aqui temos a chave do livro, o disfarce, o enigma do texto. No capítulo que fecha esta obra de prêmio, o autor sai invicto e inteiro. Não resistimos a tentação de transcrever o que se segue:

         “Caía esse último dia, mas todos os presente viram muito bem o fulgor boreal da pele branca da moça, que se despiu rapidamente, jogando blusa, saia, sapatos e meias na grama. Quando tirou a calcinha preta e a lançou sobre o caixão meio coberto de terra, seus pêlos púbicos refletiram os últimos raios do sol, o fulgor rubro do dia extinto. Fazia-se tarde. Era o fim.”

          Ao longo do texto Nêumanne dialoga com os clássicos e os filósofos. E desse diálogo que é também de todos nós, fica a lembrança do tempo que elabora a vida de nosso cotidiano, nosso trabalho e nossos anseios de felicidade. A vitória é a “Escada de Jacó”, tristeza e dor de que nos fala Fagundes Varela em seu imortal poema. E a vitória não será outra senão o paroxismo das inúmeras vertentes do livro. Que caminho tomar agora? Como meditar sobre o sonho e a realidade? Tudo nesse livro se soma à inevitabilidade que nos atira ao encontro do nada.

          O epílogo é um pôr de sol de ouro, momento eterno e divino, que desperta o sono de Eros e a virilidade dos deuses.

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O silêncio do delator, O romance de uma geração
Henrique Veltman


Nêumanne vive me surpreendendo. Quanto mais não fosse, pela sua extraordinária capacidade de escrever, e escrever bem, produzindo todos os dias artigos, editoriais, comentários. Muita coisa que, orgulhosamente, publicamos nas páginas do Imprensa Livre.

Demorei para ler o seu “O silêncio do delator”. Estava com a leitura atrasada, uma montanha de livros na fila e ele acabou ficando para o feriado de Corpus Christi.

Valeu a pena. Quem é da geração dos anos 60 vai se encontrar nas 544 páginas de “O silêncio do delator”.  Nêumanne usa, se posso falar assim, a técnica de fragmentos. Quem narra é um morto muito simpático, mas muito crítico. Como diria uma moça que trabalhou aqui em casa, “tem de um tudo” no livro do Zé. Sobretudo, tem “Invasões bárbaras”, de Denys Arcand, um bocado de Bob Dylan, Beatles, filosofia política e análise sociológica.

No velório, Nêumanne reúne os "remanescentes dos anos 60". E ali, ele conta a história de uma geração, a sua geração.
"Vista aqui do caixão", diz "a voz do morto", narrador complementar e crítico do autor, "posta em contraste com os círculos espalhados pela sala [...] de viúvas de Elvis Presley e nostálgicos de John Lennon, de fãs de carteirinha de Mick Jagger e saudosos de Jim Morrison, ela tem um viço que salta aos olhos e atinge o plexo solar como um soco de Mike Tyson - nós, da geração de Cassius Marcellus Clay, ou melhor Muhammad Ali; nós, que vimos com um pouco de preconceito o filme de Hollywood com o trânsfuga Mikhail Barishnikov, meu outro xará russo, pensando que aquilo era sobretudo o desperdício de um talento, nós que gostávamos das tiras de Mafalda e Charlie Brown. Pois é: esse viço evidente, esse jeitinho de flor beijada pelo orvalho, esse ar de sereno de madrugada não combinam com este ambiente, nada têm a ver com a morte".

Insisto: vale a pena ler.

Resenha publicada no jornal Imprensa Livre, de São Sebastião, Litoral Norte de São Paulo, na edição dos dias 4 e 5 de junho de 2005.

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O ruído da Ironia


Roberto Romano

Tempos de crise são férteis em mutações éticas. Costumes, valores arraigados e preconceitos idem, desaparecem em aluviões de palavras nas cloacas da alma. O desgaste não se realiza de modo automático. Para dissolver certezas carcomidas é preciso muito humor ácido, ousadia. A sátira translúcida nasceu com Luciano de Samosata. Nela, o riso abala os arrogantes tolos e desonestos que infernizam a sociedade. Na obra prima de Luciano, o Diálogo dos Mortos, Menipo é empurrado pelos habitantes do Hades para retornar ao mundo dos vivos. A sua missão é rir dos tolos que se imaginam poderosos e importantes. A técnica do estranhamento, equivocadamente atribuida a Bertold Brecht  (mesmo Hölderlin a usou, com resultados espantosos) é invenção de Luciano. Que o morto fale aos vivos e deles ria, isto produz um estranhamento nos ouvintes e leitores. Tal experiência muda o olhar das pessoas. Elas percebem que sob a “normalidade”  cotidiana as coisas são esquisitas, nada é tão racional quanto imaginavam.

A cultura não teria o mesmo rosto sem Erasmo, Morus, Rabelais, Voltaire, Montesquieu, Diderot, Swift, Joyce. Todos eles seguiram Luciano. No Brasil, Machado de Assis praticou o estilo lucianesco. A escrita de Luciano é aparentemente simples e se deve à arte que na Renascença será chamada sprezzatura. A simplicidade engana, como o próprio estilo satírico que fala de coisas sérias aparentando atitude hilária e vice versa. A sátira parece algo menor no mundo espiritual, mas sua  força corrosiva abala todas as crenças. Ela acelera o fim das religiões e dos regimes políticos sem que os piedosos  percebam. Basta rir de um dogma, líder ou massa fanatizada, para iniciar a sua queda. Os tiranos proibem o riso. A Inquisição, os estalinistas e os nazistas, operaram nos espaços da seriedade. Rir é subversão intolerável.

Essas lembranças surgem na leitura dos biscoitos finos que José Nêumanne nos oferece com O silêncio do Delator (São Paulo, A Girafa, 2004). O romance radicaliza experimentos anteriores com a lingua, os personagens, a música e o silêncio. Aliás, o próprio silêncio, segundo o Sobrinho de Rameau, “é colorido pelos sons”. A ondas sonoras que se encontram, interpenetram e seguem rumos diferentes em O Silêncio do Delator geram narrativas caóticas nas quais percebemos a voz do louco e a voz do escritor que ironiza os emburrecidos e embirrados revolucionários da política, do sexo, da escrita. A estrutura do livro recorda muito Jacques o Fatalista onde o verbo (numa caricatura blasfema do Pentecostes) sopra onde quer e mata os lugares comuns dos bem pensantes. Nêumanne, com o velório de ritos e oficiantes absurdos,  dissolve ao redor de um caixão que encerra o Nada  as caras hipócritas dos que se imaginam anjos de justiça. Estes pregaram ética, moral, bondade. Instalados no poder, debocharam das algaravias antes cometidas e se refestelaram na vidinha antes denunciada. Eles “chegaram lá”. Não sabem que estão mais do que mortos. Seus cadáveres, presos aos lambões da memória coletiva, exibem farrapos de sentido lógico. 

O riso de Nêumanne também dissolve os naturistas (os filhotes de Rousseau) que pregavam a liberdade sexual e o fim das repressões (eles mantiveram o volume de Eros e Civilização virgem de qualquer leitura) e das normas. “A senhora Swan é toda uma época”, diz um personagem de Proust. Em O silêncio do delator o choque dos tempos é mais cruel porque nenhum personagem pode ser apontado como símbolo. Sumiram os simbolos, sobraram corpos insignificantes. O núcleo do romance, no meu entender, encontra-se na fala do morto: “O que mais me perturba, meu filho amado, não é tanto ir embora deste mundo vão, que você sempre execrou. Mas a sensação de que este não é o velório de um homem só. É o velório de uma geração inteira, o sepultamento do sonho desta turma de gente bem-intencionada, mas que não soube cuidar direito das próprias intenções, por melhores que fossem”. Tal diagnose da geração “militante” é respondida na fala do louco : “Um dia, você vai ficar sabendo que nós todos somos um só. E a vida flui com você ou sem você”. Bons fundamentos tinha Michel Foucault ao dizer que a loucura é “raiz calcinada do sentido”. Na Stultifera navis somem as indicvidualidades, todos são igualmente insignificantes.

As “traduções” de marcos mundiais da cultura para os nossos tempos são notáveis no romance, todas escondidas por espantosa sprezzatura que engana leitores não habituados à literatura antiga. As formas clássicas assumidas por Nêumanne ajudaram os homens do passado a refletir sobre o teatro e as gerações que se disputam o espaço vital. “Você pode alegar”, diz o morto ao seu filho, “que no fundo toda guerra, inclusive a Guerra Fria, tinha como objetivo principal o espaço vital. Até a guerra entre as gerações de certa forma não deixa de ser uma disputa por um lugar ao sol. Por isso, minha morte não deixa de ser uma retirada de cena para que você e os filhos que você tiver e os filhos que eles gerarem ocupem o espaço que antes eu ocupava. C´est la vie, mon fils. A morte também é a vida, amado filho meu”. Tais linhas retomam os primórdios da nossa ética. Elas recolhem as doutrinas das Leis platônicas (I, 644d,e). Mas Santo Agostinho fornece o trecho que mais se parece aos enunciados de Nêumanne: “No mundo, diríamos que os filhos dizem aos pais: ´deixem esta terra, nós também queremos desempenhar a comédia!´. Pois toda esta vida, que nos conduz de tentação a tentação, é apenas uma comédia do gênero humano”. Agostinho é citado por Ernst Curtius (A literatura européia e a Idade Média Latina) num livro que recolhe fórmulas decisivas da cultura ocidental.

Nêumanne recorre a experimentos estilísticos com ironia dissolvente. Sua memória cultural é imensa e polifacetada. Ela vai da música ao teatro, deste à poesia e aos romances do século anterior, tudo informado por um domínio espantoso da história. O silêncio do Delator pode ser explicado como a Fenomenologia do Espírito impiedosa de nossos dias.  Numa coluna como esta, dedicada à ética, vale indicar a sua leitura. No livro são dissecados os nossos costumes, num exorcismo contra os zumbis alojados na sociedade e nos aparelhos estatais, nas igrejas, na imprensa e nas academias.

A sprezzatura de Nêumanne evidencia uma refinada bricolagem de gêneros, estilos, doutrinas, visões de mundo. Cada página continua o trabalho pictórico e sonoro da anterior mas exibe, como num caleidoscópio fascinante, novas formas e conteúdos. A graça de sua escrita encontra-se na reunião das dissonâncias e na síntese de imagens literárias que antes pertenciam a vários gêneros. Nêumanne, nas dobras de uma escrita ao mesmo tempo séria e álacre, aplica em nossa lingua a lição de Horacio do conúbio entre o utile e o dulce. E mais precisamente: ele retoma as fantásticas realizações de Luciano e reatualiza para a cultura moderna os sorrisos e  sofrimentos das pobres marionetes que imaginam, como Pinóquio, serem homens nas trilhas do Eterno. O Silêncio do Delator manifesta o ideal de Luciano: brincar com as coisas sérias. Jornalista importante, o autor lanceta o hipócrita tumor ético com a sátira que ordena O Silêncio do Delator.  Com escrita límpida e profunda, Nêumanne silencia os tagarelas que infestam o enorme cemitério chamado Brasil.

Artigo publicado na coluna ética e política da revista In Cult 92 (junho 2005) páginas 44-46.

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Inventário de perdas
Romance denuncia o silêncio de uma geração
Aleilton Fonseca


O silêncio do delator, romance de José Nêumanne Pinto, retoma a linha ficcional do inventário político-ideológico da geração 60, no Brasil, que enfrentou a ditadura militar (1964-1985), respirou a arte pop e o cinema, embalou-se no rock-and-roll e na MPB, aplaudiu as barricadas estudantis parisienses e adotou os comportamentos da contracultura. Coube à turma mais intelectualizada dessa geração - jornalistas, escritores, artistas, professores, militantes políticos - escrever, discutir e viver a memória daquela época ao mesmo tempo rica, confusa e conturbada. Na década de 80, com a abertura política, as livrarias foram inundadas por dezenas de livros de depoimentos, poesia e ficção, escritos por autores oriundos dos grupos que sofreram as agruras dos anos de chumbo da ditadura. Mas nenhum deles tornou-se o livro definitivo daquela geração.

O silêncio do delator conta a trajetória de João Miguel, um morto que fala sem peias durante todo o seu velório. Só o narrador tem acesso à consciência do defunto e inscreve sua fala no tecido ficcional. Nesta condição, João Miguel promete esclarecer a sua história e revelar os segredos de seus companheiros: ''Agora, sim, posso falar de nosso malogro''.

Nêumanne diferencia-se da maioria dos autores dessa temática. Ele adota uma estratégia francamente ficcional, ao dar o poder de fala a um morto, em pleno velório, fazendo-o dialogar com o narrador principal, espécie de moderador dos diversos discursos que contracenam ao longo do enredo. Ora, essa aplicação contemporânea do célebre procedimento machadiano, em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), surte um excelente efeito operatório, abrindo espaço para discursos desabusados, versões e contradições, reflexões político-sociológicas e, sobretudo, observações metanarrativas. São divertidas e pertinentes as intromissões do morto na escrita do romance, ao fazer reparos e comentários jocosos e analisar detalhes, criticando a técnica do narrador principal.

A ironia e a auto-ironia dão tempero ao relato, pois permitem a relativização das verdades, dos ideais, das crenças e das ações individuais e coletivas. Os pretensos heróis da resistência político-cultural dos anos 60-70 riem de si e de suas fraquezas e limitações. Um riso angustiado, com uma ironia tragicômica, mas que compõe um quadro realista, sem idealizações anacrônicas.

Em certo sentido, João Miguel simboliza o alter-ego coletivo. Nele e com ele, estão mortos os ideais de sua geração. Já o narrador principal é a outra face desse alter-ego. Se o narrador-vivo ainda contemporiza com algumas idéias e situações, ao morto, despido de qualquer chance de ação, cabe as avaliações mais ferinas. Sua fala é o antídoto da má-consciência que, inadvertidamente, pode persistir nos discursos e atitudes dos demais, ainda comprometidos com as etiquetas e os interesses da vida.

Em O silêncio do delator , a alternância do foco narrativo é fundamental, pois cadencia a trama e equilibra o pêndulo entre a realidade e a ficção. O diálogo tenso, irônico e arrevesado dos narradores, o vivo e o morto, proporciona um debate duro e esclarecedor, traça o perfil ideológico e existencial das personagens, entremostra seus acertos e equívocos, perdas e ganhos, inconseqüências, veleidades e contradições.

Este romance é, sobretudo, um inventário de perdas: da inocência, da crença, do ideal, da certeza. As personagens persignam-se sobre o morto - símbolo do malogro. A morte expõe sua trajetória ao lado dos companheiros - e o seu silêncio delata o grande teatro vivido coletivamente por uma geração paradoxalmente vitoriosa na derrota.

José Nêumanne Pinto conduz bem a sua escrita, pois adota, com acerto, os procedimentos ficcionais que dão relevo aos fatos da realidade, elevando-os a um nível de complexidade e de significação para além dos registros documentais e jornalísticos. Trata-se de uma narrativa amarga e pessimista, mas escrita com ironia e humor desabusado, para desnudar a alma de uma geração que viveu intensamente seus ideais e suas frustrações, deixando marcas na história social e na cultura do século 20.

Publicado sábado 18 de junho de 2005 na página 4 do Caderno de Idéias do Jornal do Brasil.

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A verdade da ficção

Antonio Olinto

Poucas vezes pôde a declaração do título acima ser tão bem aplicado como no julgamento do romance de José Nêumanne, "O silêncio do delator". Lendo-o, somos obrigados a reconhecer que a força da ficção é capaz de fixar para sempre uma realidade veemente do tempo.

Quem leu "A cartucha de Parma" e acompanhou o personagem Fabrício, criado por Stendhal, em sua caminhada pelo território mesmo em que acontecia/acontecera a batalha de Waterloo , compreenderá de que maneira consegue a ficção ir além da verdade e iluminar o registro puro da pesquisa histórica. Nenhum levantamento do que fora realmente Waterloo ultrapassara a simplicidade com que o personagem fictício depara de repente com Napoleão derrotado na talvez surpresa de ver que seu império chegava ao fim.

Assim aparecem os acontecimentos brasileiros das últimas décadas no romance de José Nêumanne . Romance? A palavra se aplica no caso porque existe uma relação entre a história de um povo e a ficção desse mesmo povo. Sob este aspecto, mostra-se o romancista como autor de uma reafirmação, uma confirmação (até ao sentido litúrgico do termo) de um tempo vivido.

É assim que percebo, na mais íntima e científica accepçao do verbo "perceber", os enredos que os melhores romancistas brasileiros de hoje arrancam do tempo real para com eles retratar o país e sua gente. Como compreender a Inglaterra do século XVIII sem a leitura de "Tom Jones "? Ou a Rússia do século XIX sem a obra de Dostoievsky ? Ou a França de Louis Philippe sem a "Comédia humana" de Balzac? Ou a Terceira República sem Proust? Como entender qualquer realidade sem a sua correspondente ficção?

R. S. Crane, Richard McKreon e outros defensores do "criticismo" anglo-americano costumavam dividir o exame de um romance - ou de qualquer obra "imitada", isto é, qualquer produto de arte que procure representar uma realidade, imitá-la, transformá-la - em três partes fases : em primeiro, que vem a ser a coisa "imitada"; em segundo, a linguagem em que a "imitação" aparece; em terceiro, a técnica da "imitação" e a técnica da linguagem.

Em "O silêncio do delator" tudo acontece num velório. É um morto quem fala, numa análise de estilo contundente, sobre os anos 60 do século passado, quando surgiam ímpetos de mudança na poesia, no romance, na moral de cada um, na música e no sexo (baseado na frase: "Desde o Gênesis, qualquer texto tem de ter um casal"), nos desencontros ("João Miguel que amava Helena que amava Marlon que amava Lia que não amava ninguém").

O "tempo" da narrativa de "O silêncio do delator" (tempo-duração) aparece no romance de forma renovada. Nele o contraponto literário chega um nível de excelência ao recolher os acontecimentos e as figuras que, ao longo dos últimos 40 anos, abriram caminhos e tentaram impor ordem a uma desordem.

As palavras, as frases, os elementos de ligação - usa-os José Nêumanne como propriedades particulares. O velório se estende, largamente livre, erguendo retratos de um tempo real de um tempo lateral e possível, exibindo o País em seus mistérios, unindo Jorge Amado e Cuíca de Santo Amaro a Bob Dylan e Vinícius de Morais, os Beates e Nelson Rodrigues a W.B. Yeats . A todos eles, personagens e gente de verdade, o romancista imagina como dizendo: "Gastamos o mar. "

Para José Nêumanne , a ficção é uma verdade, e dela vem. Uma verdade oposta ao convencionalismo das verdades estabelecidas, ao proteger o homem contra a nudez das novidades e a solidão dos avanços, pode nele matar a inteligência da realidade, a alegria da experiência e o sentido da dignidade essencial do ser humano. Essa verdade, íntima e jovem, que a ficção contém, é a matéria, a um tempo dura e maleável (e durável), sobre o foco narrativo de Nêumanne dirige sua atenção.

Como forma de expressão de nossa modernidade, apresenta-se o romance "O silêncio do delator" como um criador de símbolos que passam a ser os nossos, de ser os nossos, de vez em quando ingressando no terreno do poema e oscilando entre a lógica e um místico exame de consciência. A simples idéia de um velório, colocado em palavras ao longo de 541 páginas, revela a força de um narrador que vem alargar a dimensão do romance brasileiro neste novo milênio.

José Nêumanne pode ajudar numa reação à literatura ligada a um excesso de tecnicismo, ao artífice vazio, à desconversa e à literatice; em favor do conteúdo inconsútil com a boa técnica, do significativo posto em linguagem nova e da palavra usada como instrumento de busca da verdade de um tempo.

"O silêncio do delator", de José Nêumann , lançamento da editora "A Girafa". diagramação de Alessandro Mussato, capa de Newton César, acaba de conquistar o Prêmio Senador José Ermírio de Moraes da Academia Brasileira de Letras.

Publicado terça, 19 de julho de 2005 na Tribuna da Imprensa

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Testemunho de uma época, espelho de uma geração

Ronaldo Cagiano

Quem não tem saudade dos antológicos anos da década de 1960 em que pontificaram os Beatles e os Rollings Stones? Época em que Paris era uma festa para a resistência política às ditaduras e os movimentos sociais arrastavam multidões. Anos em que uma nova linguagem expressava o descontentamento e a indignação, em que as superpotências ensaiavam um confronto nuclear, surgia uma vanguarda no cinema, na arquitetura, na música, na literatura, no teatro e nas artes plásticas. Uma inspirada geração de criadores, pensadores, filósofos e intelectuais, desafiava os cânones e se impulsionava para abalar as estruturas estéticas, políticas, conceituais e morais.

Estava em voga a Guerra Fria, motivada pelo auge do comunismo, com o Vietnã e Cuba impondo dura humilhação aos Estados Unidos. A música de protesto em marcha, os Beatles empunhando a bandeira do pacifismo, 1968 na França e no Brasil, Woodstock e a liberdade de expressão, o culto ao prazer e às drogas e as palavras de ordem do "make love, not war". Cultuavam-se o cinema de Fellini, Truffatu, Godard, Glauber Rocha e Buñuel, o teatro de Nelson Rodrigues e Augusto Boal, os grandes festivais de música e a crença na revolução armada, em Che, Fidel e outros camaradas. O homem invade a lua, a bossa nova traz um novo alento à música brasileira; o AI-5, um balde d'água na liberdade e nas garantias individuais; a censura recrudesce, o mundo em ebulição, o existencialismo em moda, filosofias vicejando em todo o canto, o mundo acreditando numa saída.

Os ingredientes desses anos de rebeldia, insubmissão e efervescência estão mapeados no livro "O silêncio do delator" (Ed. A Girafa, 2005, SP, 544 pgs.), do jornalista e escritor José Nêumane Pinto, numa obra que funde memória político-social e ficção. Romance testamentário de quem viveu os legendários últimos anos de um século em agonia e desencanto, época de veloz escalonamento de valores, mudança de comportamento, debates ideológicos e implosão das velhas estruturas de pensamento, que deram origem a uma cultura que influenciaria definitivamente as décadas seguintes.
Com um texto que funde a linguagem ágil do jornalismo com a densidade de um texto ficcional, o paraibano José Nêumane Pinto, cuja bibliografia inclui livros de poesia, reportagem, romance e crônicas, faz um preci(o)so trajeto por um período que é um divisor de águas na história do Brasil e do mundo, um tempo profético, antecipador do próprio caos e dissolução por que passa o mundo de hoje, globalizado e tecnológico, mas menos poético e provocativo que aquele.
O livro, fiel aos acontecimentos, tem um vezo fragmentário, à luz de um ritmo e uma harmonia que perpassam todo a narrativa, com freqüentes alusões às musicas daquela época, em que os diversos tempos, lugares e acontecimentos se correlacionam, num plano simbiótico.

Personagem principal da história, um certo Marco Antônio, tratado pela alcunha de Coelho, tem nos discos que fazem a cabeça da galera naquele momento o pretexto para introduzir os seus amigos no círculo das grandes novidades e discussões. Sujeito enigmático, coloca-se como um certo guru, incorporando a atmosfera instigante do período. Outro cenário se intercala: o velório de um desiludido professor universitário, João Miguel, em que ele narra as utopias e frustrações de uma geração que sonhava em mudar o mundo, pelas armas ou pelas drogas, e que se vê enterrada com ele.
Um fluxo de consciência e de memória entremeia todo o romance, na cabeça do morto e na lembrança dos amigos nos momentos que antecedem ao sepultamento. Os fatos se sucedem como numa película e numa espécie de trânsito onírico entre o finado e os presentes, é aquele acaba conduzindo o fio da narrativa interferindo na elucidação dos fatos, na ordenação dos pensamentos, no encadeamento das referências e lembranças. As situações nos remetem ao ambiente nostálgico e delicado do filme "As invasões bárbaras", em que um professor, acometido de um câncer em estágio terminal, reúne-se com os amigos dos tempos de faculdade e passa em revista aos seus anos e às suas ilusões, numa espécie de encontro de contas com a própria vida.

Nêumane saiu-se bem ao fazer o balanço crítico de uma época, sem cair na clicheria ou no lugar-comum, evitando o panfletarismo, a exacerbação saudosista ou o viés sentimental muito comuns em literatura que visa resgatar a história a partir da vivência de quem as conta. É o registro sincero sobre um tempo que não se reproduzirá, um tempo em que a consciência se aliava a uma causa e se sabia por que empunhar bandeiras e lançar os gritos, algo de que carecem os que tentam levantar a batuta para comandar a orquestra da história atual.

No plano da construção formal, o autor concede uma inovação ao dar aos vários personagens o nome de versos de uma canção de Caetano Veloso, tais como Voz do morto, Pés do torto, Cais do porto, Vez de louco, A paz do mundo, Atrás do muro, numa sutil referência a uma visão polifônica representada por uma época multifacética e conturbada.
O silêncio do delator é um romance metafórico, formidável referencial para os que querem compreender a recente história do Brasil e do mundo. Uma obra que nos fala de uma realidade nua e crua: o enterro das utopias, a decrepitude dos sonhos, o fim das ilusões e o estabelecimento de uma nova ordem, impondo o reinado do alheamento e da passividade, a prevalência de uma época de coisificação e etiqueta, em que o mercado é o grande deus, com seu terrorismo e seus fundamentalistas econômicos, que afastam toda a possibilidade de retorno ás utopias.

"O silêncio do delator", de José Nêumanne, lançamento da editora "A Girafa". diagramação de Alessandro Mussato, capa de Newton César, acaba de conquistar o Prêmio Senador José Ermírio de Moraes da Academia Brasileira de Letras.

Publicado sábado, 22 de julho de 2005 no Estado de Minas

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