"POETICIDADES E OUTRAS FALAS ", POR RUBENS DA CUNHA

Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmente
no Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o ebook: "A busca entre o vazio", disponível para download,
na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.

Coluna de 23/11
(próxima coluna: 09/12)

TRÊS PEQUENAS IMAGINAÇÕES A RESPEITO DE DEUS


ALMA RASCUNHO

(partindo de Borges)

Umdeus é triste. Foram eternos de luta para construir Ohomem. Teimoso, não admitia construí-lo com o pó que fez Ocavalo e Otigre. Até então seus filhos mais afeitos à perfeição. Umdeus queria um pó diferente, um pó prescrito na ternura, pré-escrito no amor. Sonhando, Umdeus conseguiu montar o pó que daria origem ao Ohomem. Com um sopro desnudo, arquitetou as carnes, os ossos, a pele do filho mais dileto, gastou alguns séculos no sangue pois não conseguiu de imediato o vermelho desejado. Descansou, para sonhar de novo, dessa vez com a alma. Foi assim que começou a tristeza de Umdeus: ele acordou sem ter sonhado a alma do Ohomem. Nunca conseguiu. Dormia, tentava sonhá-la, acordava, percebia que era falho o sonho. Dormia de novo e a esterilidade se mantinha. Cansado, Umdeus moldou a alma sem ter sonhado com ela. Rascunho mesmo. Umdeus é triste por isso também e por outras coisas demais ocultas.

 

O NOVO DONO

Quando Deus morreu era um dia azul. Inverno. Estávamos todos no sol. Lagartos. De repente, o azul do céu começou sangrar, primeiro foi um filete de sangue escorrendo pela abóbada, até se perder no horizonte, depois mais e mais até todo o céu estar vermelho. Deus sangrou devagar, pois não choveu sangue, como era de se esperar, tudo o que vimos foi o líquido escorrendo, como se estivéssemos debaixo duma redoma e alguém jogasse tinta sobre ela. Alguns ouviram gemidos. Não foi comprovado. Outros juraram ter visto Deus fugindo para Saturno, com Jesus, Maria, e mais alguns santos e anjos, também não foi comprovado. Desde aquele dia não tivemos mais notícias de Deus, comprovando assim sua morte. Ficamos tristes por um tempo. Luto mesmo. Deus cuidava bem de nós. Agora, passados dois invernos, o céu até está azul novamente: o novo dono usou as nuvens para limpá-lo. Chama-se Lúcifer. Diz que matou Deus porque não teve escolha, e só retornou para o que era seu. Não nos fez mal. Nos finais de semana desenha fogueiras entre as nuvens. As crianças gostam.

 

A Construção

Deus começou a construção de seu cárcere bem cedo. Nem sol ainda. Preparou o chão: um metro quadrado. Suficiente. Cimento reforçado, contra-piso, piso. Ergueu três paredes, rebocou, preparou o teto e pintou tudo de vermelho por dentro e por fora. Depois, pelo lado de dentro, começou a erguer a quarta parede. Já todo fechado e escuro, ainda pintou esta parede. Riu um pouco pois sua construção ficara com uma das paredes externas sem pintar. Não pensou nisso. Podia ter pensado. Tarde agora. Agora todo fugido. Todo escapado. Disseram que não tinha mais saída. Construiu em torno de si a saída. Todo emparedado. Todo seguro e vermelho e feliz.

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