"POETICIDADES E OUTRAS FALAS ", POR RUBENS DA CUNHA

Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmenteno Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download, na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.

Coluna de 23/4
(próxima coluna: 9/5)

O Diário de uma Manhã

Outono dentro e fora dele. Caminha pela cidade. Observa transeuntes. Observa-se por dentro. Sabe que para além do sangue, corre nele rios de sentimentos, vaguezas estranhas, memórias de antes de seu nascimento. Dentro dele pulsam saudades e revoltas. Por fora, envolto na casca do anonimato, caminha. A solidão marca seus olhos a ferro quente. Gado agora, nem a vontade de um poema, de uma música, nem a beleza de um corpo alheio retira dele a estranha sensação de perigo.

Tem amigos, tem família até em laços estreitos, conhece mais a felicidade que a tristeza, mas hoje, neste outono chuvoso, mutante, percebeu-se coberto de penúrias, um quase luto, não sabe por quem, por ele mesmo? Caminha, vê a cidade em sua respiração atravessada de barulhos. Alguns jardins são tão bonitos, outros estão descuidados. Raça estranha esta dos humanos. Assemelham-se tanto às formigas e desconhecem tanto as formigas. São quase todos pressa nesta hora da manhã. Ele não. Ele caminha aparentemente sossegado, iniciará no trabalho apenas a tarde. Tem as manhãs livres. Não sabe o que fazer com este excesso de liberdade. Tentou o sono. Tentou a televisão. Tentou ficar deitado olhando para o teto. A leitura também foi uma tentativa. Nada conseguia retirar dele a sensação de perigo, este estar parado, estar inútil.

Resolveu caminhar, observar a cidade, pequenos recantos, gretas invisíveis aos olhos diários. Anda a passos lentos, visionando tudo o que lhe parece estranho fora de ordem. Tem com isso apaziguado um pouco o perigo de não fazer nada. Trata seu caminhar como um trabalho. Tem que ser feito de acordo com as regras, tem que ser automático. Tem que ser distanciado do pensamento. Mas por dento estão pulsando coisas, idéias que nunca teve. Pensa em Deus, suicídio, na morte violenta das crianças. Pensa em nuvens, anjos, dedos e vulvas. Pensa na mulher, no filho, no Filho. Pensa demais para uma manhã de outono. Olha o relógio, não acredita ainda tem muito tempo, ainda tem que enfrentar duros pensamentos até começar o trabalho. Precisa ocupar-se, depreocupar-se. Diria a filha mais velha: “desencana, pai”. Desencanar, sair do cano. Sair da frente do perigo de se ver de perto e perceber que apesar de tudo, construiu-se em cima de dunas, não fez sua casa em sólida rocha, desobedeceu a fala do Cristo. Pensa isto porque passou na frente de uma igreja. 10:00h e alguns já estão orando, buscando salvação na escada divina. Ele pensa em entrar, entregar-se às palavras mágicas do pastor. Sabe que precisa, sabe que está com encosto, Satanás é esperto, tem artimanhas. Quase à porta do templo, volta-se, volta para casa. Desiste de encontrar-se com Deus. Meio correndo, meio com medo, retorna para casa. Logo começa o trabalho. Lá tem serventia, lá vão notá-lo. O trabalho dignifica o homem. A vadiagem numa manhã de outono pode ser ferida aberta e nunca cicatrizada. Vai conversar com o chefe, precisa rever este horário. A manhã livre pode aprisioná-lo para sempre a si mesmo. E isto, isto é o caos interno. Tem uma vida a cumprir, não pode se dar o luxo de refletir suas misérias.

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