"POETICIDADES E OUTRAS FALAS"
RUBENS DA CUNHA


Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmenteno Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download, na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.

Coluna de 09/07
(próxima coluna: 23/7)

Delírio às dez horas da manhã ou Inverno no mundo

Estou com sonhos nos olhos. Sono às dez horas da manhã. As mãos formigam. Prenúncio de inverno durável. Estou com poeira nos dentes. Sol azul. Céu amarelo agora. Tenho dentro poemas, cartas de reconciliação, estrume seco para as plantas. Estou com gelo no peito. Dor nenhuma, que dor é coisa de homem. Sou felino nesta manhã. Leopardo e alma nesta manhã. Quero muito mais do que este dois metros cúbicos em que me enfiaram. Tanto ar, tanto fora, externo. A rua é uma esteira para exercícios. E eu aqui, estático. Estátua. Como aqueles que se pintam inteiramente e congelam-se nos sinais. Estátua respirando, olhando além dos dias. Estou com gorduras na cintura. Não me percebem mais os sentidos magros dos outros. Ausente. Assado na virilha. Dor nos rins. Estou com algemas nos tornozelos. Andar pouco, aos saltos. O frio que não cessa. Não passa. Não estabiliza, gosta mesmo é deste ir e vir. Eu também gostaria deste ir e vir. Destino não quis. Destino não aprecia viagens. Paralítico, o destino. Santo, o destino e eu tão inferno, tão pecador. Contraste. Contradigo o que digo. Sou isso mesmo, um pária, um pulha, um bom filho e excelente marido. Pai ainda não. Lembro-me de Braz, o Cubas, a miséria, o legado. O abalo na desordem natural das coisas. Estou parido em orações. Perdido como convém aos bêbados. Os cães percebem meu cheiro. Vem até mim, lambem meus pés. Bem serviço de cachorro, isso. Eu condeno a inocência do animal. Não ouso condenar a minha falta de inocência quando lambi os pés de muitos. Dinheiro, amor, atenção. Eu lambi os pés de muitos. Um afago nas costas, uma comida quente. Eu lambi os pés de muitos. Agora que sei disso, que tenho sonhos, poeira, gelo, algema, o que farei? E este amontoado, arrazoado de impropérios? Ditos, escritos, emudecidos, umidecidos nas lágrimas. O que farei? Um nuvem trouxe sombras à minha sombra. O frio continua. Em breve líquido. Estou com a vida por fazer, montar, esquadrinhar. Não sei como começar. Cego, apesar dos sonhos. Tímido, apesar do dia que amanhece. Silencio e esqueço. Sem soar trágico, pessimista, suicida, pronuncio a mim mesmo: silencio e esqueço, é o que resta.

« Voltar