Coluna de 09/10
(próxima coluna: 23/10)
CARTA À TERRA
Terra, o futuro inequívoco da morte me abrigará em teus covis, um dia serei parte da tua aparente concordância à invasão contínua das raízes, ao caminhar dos vivos sobre tua pele. Serei cúmplice também deste teu silêncio, arquiteto de vinganças. Terra, tu sabes que teu sócio, o tempo, não possui subsídios para minhas vontades de permanência, em poucos anos a decrepitude estará em mim, forçando-me os olhos para o chão: onde eu era somente pés, serei todo face. Isso se eu não for ceifado pela mão tácita de teu operário, o destino, que pode sagrar-me a ti em corpo jovem. Devo avisá-lo que o meu espírito forjado em lamentações está verde frente a madurez que exiges dos teus alimentos? Ou te preocupas realmente com o travor que deixarei em tua boca se eu morrer por estes dias? O meu corpo se destrona fácil sob camadas incontestes de pavor, quando me imagino parte de teu estômago ou hóspede em teus intestinos de grande mãe. Morrer é um sacrifício externo à vontade do instinto, sei que me foi dado crer em possibilidades depois que os olhos fecham, mas isso é salvar-se do esquecimento pela via fácil da ilusão. Morrer contém estigmas que não decifro. É como um toque de cão no loquaz desejo do muro. Se tremo ao pensamento é porque às vezes quero ser muro, aqueles acariciados com os verdores da umidez, Percebes como os muros são mais escuros quanto mais próximos de ti? Também escureço quanto mais minha vida acolhe atalhos, quanto mais imagino os vagidos milenares que residem em mim, mas não chegam à memória aparente dos sentimentos. Às vezes penso em ser cão, é um animal quase unânime que possui a vida presa em aleluias inúteis.
Recebes também por alimento os cães, deves saber do que falo.