Coluna de 9/12
(próxima coluna: 23/12)
Encruzilhada
Tempo de corroer. De comer sobras mastigadas. Não quero ser um agoniado. Difícil evitar. Difícil não pesar o mundo e sabê-lo impossível de carregar. Algumas coisas ainda levitam nos olhos dos sensíveis: crianças brincando, amores iniciais, pássaros e cães. A amizade continua seus atalhos tortuosos. A felicidade continua sua vida de objetivo final. O humano continua seus andares de arrogância, entre uma gentileza e outra. O mundo explode em homens-bombas, ônibus incendiados e furacões. Porem, no nordeste da China um poeta descobriu um verso novo. Na Dinamarca, um músico teve uma epifania de neve. No Saara, um nômade conheceu o amor. O mundo se agride continuamente, mas perto de cada um: flores, nuvens, desejos cariciam os pés e os sonhos. A vida simples dos simples ainda predomina. Governos, injustiças, covardias, corrupções são anomalias que afetam, mas não destroem os pequenos afetos anônimos: mães, avós, pessoas que cuidam dos animais, gente ainda crente na solidariedade, no desapego, na tentativa de mover o mundo para um lugar possível, sem cortes abruptos, sem desgraças provocados pelo homem. Um mundo em que viver faça sentido real e não seja esta realidade torta, sem perspectiva, feita de abismos. Um mundo em que a palavra ganhe contornos de delicadeza, em que os gestos sejam sócios da verdade, em que cada olhar transpareça alegrias. É tempo de corroer, de correr para a vida mais ingênua, mais impressionada diante das pequenas surpresas cotidianas, a vida mais banho de chuva, de mar, cascata. A vida mais leve e limpa possível. É tempo de encruzilhada, ou seguimos o fluxo do desespero ou estacamos, negamos a agonia e iniciamos uma nova marcha, sem pieguices, pecados, hipocrisias e preconceitos. O tempo é agora. Antes não aconteceu, depois será muito tarde.