Coluna de 9/2
(próxima coluna:23/2)
O adjetivo 'poético' é usado para designar diversas manifestações artísticas. Assim, além da literatura, campo natural do poético, a música, a fotografia, as artes, o teatro podem carregar sobre si esta característica. Ser poético não é garantia de qualidade, pois é muito comum, na tentativa de parecer profundo, inteligente, o criador optar por uma linguagem falsamente poética, apenas para disfarçar a superficialidade. No entanto, se bem dosada, se for uma atmosfera intrínseca ao projeto artístico, este clima, que normalmente fica entre o mágico e o delicado, pode conceder à obra uma força maior.
No cinema, o poético surge quando as imagens do filme afastam-se da reprodução normal da realidade. Numa associação entre texto, interpretação, edição, luz e música, o conjunto de cenas de um filme poético transporta a história para um mundo irreal, ou supra-real. Assim, um pôr-do-sol filmado de forma realista é bem diferente de um pôr-do-sol filmado de forma poética. A locação e o dia podem ser os mesmos, mas o olhar poético eleva o comum a um plano diferenciado. Recursos como câmera lenta, planos longos, closes , ênfase na fotografia, são muito usados se o cineasta quer imprimir este tom nos filmes. Não é apenas no campo da técnica cinematográfica que o poético surge, ele se manifesta também com falas mais próximas da linguagem literária, ou quando os atores interpretam de forma mais teatral. O poético se explicita quando as cenas suscitarem um estranhamento, uma delicadeza pouco usual em termos de cotidiano.
Federico Fellini, além de ser um dos maiores cineastas da história, foi um esteta incomum. Sua trajetória no cinema começa como participante do movimento neo-realismo italiano e à medida que vai amadurecendo, mergulha num mundo de fantasia, ilusão, subvertendo a realidade a ponto de torná-la quase irreconhecível. Produziu diversos filmes em que o poético era um fator determinante para expressar uma visão de mundo, normalmente ácida, mas nunca agressiva. Apesar das contundentes críticas que Fellini fazia à sociedade, manteve sempre uma certa condolência, um certo carinho para o humano, como se fôssemos animais fadados ao erro e por isso dignos de cuidados especiais. Fellini fez com que seus personagens transitassem entre o sublime e o patético, revelando-nos a natureza dúbia e insegura do homem.
O filme E La Nave Vá , produção franco-italiana de 1983, considerada pelos críticos, a última obra-prima do cineasta, expõe a visão felliniana de uma época que estava acabando. Um tempo em que o mundo saia do século XIX e ainda não tinha assimilado totalmente a revolução tecnológica e cultural que viria, além disso, em breve nasceria a primeira guerra mundial, este conflito divisor de águas no mundo moderno.
O roteiro escrito por Fellini e Tonino Guerra se passa a bordo de Glória N, um navio de luxo que deixa a Itália em 1914, levando as cinzas da maior cantora de todos os tempos, Edmea Tetua, para a sua terra natal: a ilha de Erimo. Amigos, artistas, nobres e a tripulação do navio embarcam nesta viagem compondo um mosaico de tipos humanos único na cinematografia mundial. O jogo de aparências, a derrocada da aristocracia, a luta de classes, a acolhida de refugiados sérvios que naufragaram ocasionando um choque cultural profundo, são acompanhados pelo 'cronista' Orlando, um personagem metalingüístico, que fica falando com o expectador, apresentando os tipos e emitindo julgamentos morais, mas que não é onisciente, diversas cenas acontecem longe do olhar de Orlando, o que amplia em muito o leque narrativo do filme.
Com este painel de tipos excêntricos, Fellini fez um filme episódico, em que muitas cenas têm uma vida própria impressionante, apesar de estarem absolutamente ligadas ao conjunto final.
Em “E La Nave Vá ” duas artes são diretamente homenageadas: a música clássica e o cinema. Filmado como se fosse uma ópera, amparados por clássicos de Rossini, Litz, Verdi, Strauss, além das canções feitas especialmente para o filme e tendo seqüências inteiras de cinema mudo e cenas que remetem ao universo de Buster Keaton e Charles Chaplin. Além da espetacular revelação dos bastidores no final, que revela um exercício máximo da metalinguagem, quando o mundo irreal se funde ao mundo real, demonstrando a maestria de Fellini ao misturar os dois universos, e sobretudo, ao expor sem medo toda a sua técnica artística.
O poético, nesta obra está associado à surpresa, ao inusitado quase triste das situações e personagens. Surge em duas frentes: na construção das cenas, e nas personagens femininas.
Cenas – O Corpo do Poético
O mundo felliniano se monta como se fosse um quebra-cabeça de sensações e imagens. Destas cenas poéticas, destacam-se:
O longo plano inicial: mudo em preto e branco, como se fosse uma filmagem qualquer feita num cais em 1914. Os personagens vão se apresentando apenas pelos olhares, gestos, atitudes, o que já delimita a suas personalidades. Muitos dos figurantes olham para câmera, como que assustados, tímidos, aos poucos o som aparece, depois a cor. O poético resulta da transposição do cinema mudo para o cinema falado e colorido, de forma muito sutil com que apresenta o choque entre a aristocracia cultural e a plebe existente no cais. Este choque vai mediar grande parte do filme, dando também sustentação política à história..
O embarque das cinzas de Edmea Tetua no Gloria N. Operística, com enquadramentos geométricos. Fellini cria um momento em que a arte, mais propriamente a música, torna-se a única expressão capaz de suportar o corte abrupto que a morte impõe. A realidade cede lugar à delicadeza exuberante da ópera.
Já com o navio em alto mar, dois momentos musicais intensos: os professores de música, mais outros artistas entram na cozinha e tocam Mozart manejando copos de cristais, e os cantores da ópera visitam a casa das máquinas.
Na cozinha, mostrada anteriormente numa cena chapliniana, os artistas exibem-se como instrumentistas, a música entra em contato com o mundo organizado e limpo da gastronomia. Tudo recende à delicadeza dos cristais. Constrói-se a harmonia desejada e a música pára aquele ambiente, preenche-o, os aplausos fecham a cena.
Na sala de máquinas, os cantores e as cantoras duelam a pedido dos trabalhadores. Duelam contra o barulho das máquinas, duelam contra si e contra os outros. Nesta cena, manifesta-se o olhar crítico de Fellini sobre os artistas. Os cantores aceitam o desafio, muito mais para vencerem ao outro, do que para agradar aos expectadores. A vaidade é ressaltada em cada nota mais alta que a voz consegue alcançar. A música vem como uma invasora na ordem. A elegância e a exuberância dos artistas contrastam intensamente com a sujidade e escureza daquele porão. No fim, o “povo” agradecido aplaude a bondade dos “artistas”, que voltam para a sua vida de mesures a aparências. Nesta cena, o poético está na perda da inocência manifestada nos olhares de reprovação de Ildebranda Cuffari, cantora cogitada para substituir Edema Tetua. Conforme forem adentrando no mar, a sensação que estes artistas tinham de um mundo se limitando aos seus umbigos, desmancha-se. Serão diversas as mortes da inocência neste navio-ilha.
No entardecer, acontece a cena, que resume a obra cinematográfica de Fellini, sobretudo aquela que envolve a fantasia. No convés, duas cantoras observam o por do sol. Uma delas diz: “olha, é tão bonito que nem parece de verdade”. A cenografia que compunha o pôr-do-sol é visivelmente falsa, mas em Fellini, o falso torna-se tão verdadeiro, que parece falso novamente. É a substância de seu cinema. Calcadas em cima do sonho, as histórias são tão reais, que passam a ser confundidas com sonhos de novo. Do círculo entre o irreal e o real, o poético revive inteiramente.
Outros momentos de poesia felliniana são as aparições da princesa cega. Ela anda pelo corredor batendo com a bengala nas paredes; olha/não-olha por uma vidraça depois de perpetrar uma traição. Esta mulher beija de olhos abertos. Os olhos que tudo e nada vêem. Como o cinema de Fellini.
As cenas se sucedem, e vão surgindo pouco a pouco elementos de choque. O cronista Orlando vê uma adolescente como se fosse uma ninfa; nos porões do navio, um rinoceronte sofre enquanto seu tratador chora em turco; mulheres mulçumanas oram no convés; uma gaivota entra na sala de jantar; a imagem de Edmea Tetua é projetada cinematograficamente na parede.
Um dos grandes conflitos do filme é o resgate de refugiados sérvios. Ao pôr um mundo estrangeiro em contato com a aristocracia, Fellini traça o perfil da Europa com seus inúmeros tipos humanos. Num primeiro momento a desconfiança mútua surge, depois a arte, neste caso a música e a dança, aparece como elemento catalisador e unificador dos indivíduos. Todos os personagens convergem para um momento de sensualidade explícita no convés. Uma exacerbação dos sentidos e uma quebra de preconceitos. Como é padrão nestas situações, os nobres descem ao nível da plebe, e percebem que seu mundo de contenção e aparência não é tão alegre assim. Há também a evidente tensão sexual que mantém o padrão histórico: o rico bufão engraça-se com a cigana pobre. A contida senhora inglesa derrama-se nos braços de homens rudes. O erotismo proposto por Fellini acontece no contato direto com o diferente e resulta poético por causa da maestria com que ele conduz a cena.
Perto do final, depois de ser atacado por um couraçado austro-húngaro, o Glória N naufraga. Duas cenas manifestam a veia poética de Fellini: o Conde de Bassano, grande amigo de Edmea, afunda projetando as imagens de Edmea Tetua na parede e duas borboletas voam sobre um corredor inundado. Sem palavras, apenas a imagem alicerçando a poesia.
Depois, Fellini volta ao começo do filme e busca na ópera a força necessária para expressar-se. Os personagens saem do navio, para os botes salva-vidas, cantando. Com a mesma emoção com que entraram. Novamente, somente a música é capaz de agüentar o peso agressivo da tragédia.
Para finalizar, a câmera sai do cenário mostra os bastidores, a suspensão hidráulica que movia o navio, os câmeras, os profissionais que ficam atrás das imagens. Num corte, Fellini mostra o avesso, que tudo se tratava de uma construção do imaginário. Mas demonstrar como tudo foi feito não é um final adequado, é preciso voltar ao sonho, então fecha-se o filme com o narrador Orlando e o rinoceronte num bote salva-vidas, remando rumo ao nada. Fellini até revelou a realidade do cinema pela metalinguagem explícita, mas encerra seu filme com uma imagem de poesia surrealista.
Esta sucessão de cenas vai sendo costurada com humor e melancolia, tradutores fiéis do fim de uma época, de um estilo de vida, agentes capazes de suportar o tempo de dor que atacaria as próximas décadas. Fellini foi para o passado resgatar o poético constante na saudade, em tudo aquilo que a arte pode conceder ao indivíduo.
Feminilidade – A Alma do Poético
Outro ponto de forte condensação poética trata-se das personagens femininas, e dos homens afeminados. É neste conjunto de pessoas que residem os grandes conflitos, os olhares mais densos, as aparições mais surpreendentes.
Ildebranda Cuffari, feita pela atriz Barbara Jefford, é uma vice-diva, que com a morte de Edmea Tertua, assumirá o posto de maior cantora viva. Esta mulher é um misto constante de tristeza e inveja. Ruína por dentro, pois se sabe eternamente menor do que Edmea. Mantém uma elegância sóbria a todo custo, dirigindo olhares condenatórios a muitas situações. É a mulher que mais sofre com as diferenças impostas, assusta-se com a casa de máquinas, com a gaivota, com o rinoceronte, com os sérvios. Em Ildebranda Cuffari reúne-se todos os preconceitos da elite cultural vigente.
A adolescente, que aparece como uma pontuação poética nas cenas, sempre de branco, contrasta com todo o cenário. Nela concentra-se a inocência, a vida ainda sem marcas externas. Nesta personagem, que tanto encanta o narrador Orlando, a beleza poética está na sua inadequação ao mundo que a rodeia. É por esta inocência que ela se apaixona por um sérvio e rompe definitivamente com o mundo, ao embarcar numa aventura romântica com seu amado. A princesa cega de grande visão coordena os homens da política, usa as armas de sedução e voz suave. Feita por Pina Baush, esta personagem, paradoxalmente, participa de cenas com grande poesia visual: andar pelos corredores batendo a bengala nas paredes, beijar de olhos abertos, pedir que se repita o cardápio anterior. Misto de artimanha e inocência a princesa cega compõe um mundo à parte nesta viagem. Devido a sua condição de realeza, não se mistura com os demais viajantes. Paira sobre o filme feito uma divindade. Representa muito bem alguns aspectos das artes: o simbolismo, o isolamento, a participação indireta na vida das pessoas, a superioridade de espírito dentro de um corpo frágil.
O universo masculino do filme não é tão expressivo a ponto de suscitar o poético. A exceção fica por conta de dois homens que estão afastados do universo masculino tradicional.
O Conde de Bassan, amigo de Edmea Tetua. O Conde anda pelo navio com seu jeito afetado, seu olhar entre a arrogância e a tristeza. Por duas vezes, Fellini usa este personagem para homenagear o cinema. O conde projeta imagens de Edmea na parede e chora. São comoventes suas tentativas de manter a cantora viva, seja numa farsa espiritual, seja naufragando com a sua imagem. O Conde é uma espécie de espelho da Princesa Cega, pouco se imiscui com os demais no navio, mantém-se preso à sua perda. Suas cenas são esparsas, mas sempre rompedoras da normalidade. Característica inerente ao poético.
O mímico homossexual. Um personagem que não cresceu, que parece o tempo todo fixo na infância, mas que é atravessado de desejo pelos marinheiros. Apesar da pouca participação no filme, este personagem é o mais complexo dos homens. Metade criança, metade desejo sexual reprimido. Um homem montado sobre estas bases tende ao sofrimento contínuo. Sua ambigüidade é densa poesia.
“E La Nave Vá” é um filme para ser revisto pelos detalhes, pela independência das cenas e sobretudo pelos seus tipos humanos. Mesmo caricatos em determinados momentos, exagerados, exacerbados, conseguem carregar sobre si muitas das facetas típicas dos fragilizados.
O Poético, neste filme, ganha contornos inesperados. Resultado do talento inigualável de Federico Fellini, homem que soube corporificar em cinema a grande abstração chamada Poesia.