Coluna de 23/2
(próxima coluna:9/3)
Joinville está em mim. Eu resido em cada pedestre, rua, mangue, trânsito e árvore desta cidade. Eu estou no Rio Cachoeira: vísceras e morte dia e noite atravessando o frágil corpo urbano. Eu não estava ali no tempo em que ele era navegável, isso trago na imaginação.
Eu estou no pórtico quase abandonado, na estação ferroviária desassistida, no mirante entregue à fome da ferrugem. Bonitos nos tempos de antigamente, ou nos cartões postais da rodoviária. Eu gostaria que a beleza, plastificada nos postais, voltasse a seu lugar de origem. Que a realidade não desmentisse as fotos. Esse ainda é um desejo possível.
Eu estou no sotaque alemão dentro de um mini-mercado no bairro Glória, no sotaque paranaense no Jardim Paraíso, ou na fala globalizada dos hipermercados do Centro. Estou em cada bicicleta sem ciclovia, apesar do título sustentado pela cidade desde a década de setenta. Estou dentro de um quadro de Juarez Machado no hall do Teatro Juarez Machado.
Se me procurarem direito, fico também na Rua das Palmeiras, no lado esquerdo, vivendo dentro da terceira palmeira, isso para quem olha da Rua dos Príncipes. Caso me desencontrem, estarei na Rua Polônia e sua eterna falta de asfalto, ou em algum lugar entre o Morro da Formiga e o Morro do Boa vista.
Estar na cidade vicia-me desde criança. Quando eu ainda morava num sítio em Araquari e vinha para cá de vez em quando fazer compras, passar férias, preocupar minha mãe: “não esquece de olhar para os lados, menino!”, já tinha a sensação de que eu, mesmo não estando diariamente, morava nos paralelepípedos, nas esquinas tumultuadas da Rua Santa Catarina, no aeroporto, que naquele tempo parecia tão distante.
Manchester Catarinense, cidade das flores, dos príncipes, das bicicletas, maior do estado, importante pólo industrial, comercial e turístico, Joinville é a cidade destas tantas coisas. Nunca consegui estar em nenhum destes títulos oficiais. Se gosto de estar nas flores, são aquelas do campo, que ficam no pé da Serra Dona Francisca, muito mais do que as flores bem cuidadas dos bem cuidados jardins oficiais. Se gosto de príncipes, são os agricultores, os operários, os comerciantes simples, muito mais do que aqueles que aqui nunca vieram, apesar do palácio e da honra até hoje concedida a eles.
Estar em Joinville é ser melhor em algumas coisas, não tanto em outras: tem geladeiras, tubos, metalurgia e fundição, não tem mar, não tem neve, falta também algum cuidado com o patrimônio histórico.
Eu sempre estive no Prédio do Cine Palácio, até o dia em que construíram um caixote de vidro e cimento pregado nele. Desalojaram-me da beleza e da história. Queria tanto saber quem fez isso, colocar o responsável de castigo: alguns dias em pé, na frente de sua 'obra', apenas apreciando o mal que fez à cidade. Já não basta as periferias, cujos nomes carregam a mentira de 'jardim', ainda temos que destruir prédios antigos, para confirmar nossa sina de terceiro mundo?
Certos dias, gosto de me esconder nos quase parques: Morro do Finder, Caieras, Zôobotânico. Noutros, gosto de chorar junto às praças severamente esquecidas pelo poder público. Agora eu estou na pichação, no acúmulo de sujeira e drogados. Já estive nas crianças, famílias, amigos que usavam as praças para o esporte e lazer. Bons tempos aqueles, talvez voltem.
Estar dentro desta cidade, não é somente ficar no lado ruim ou irônico, mas também estar numa certa leveza provinciana, nos ipês e jacatirões. Na chuva contínua que costuma banhar esta terra e em certos azuis de verão e outono que são insuperáveis. No inverno, quando rigoroso, é possível estar nos pastos de Pirabeiraba e encher os olhos de geada.
Se estou na maior cidade do estado, isso pouco me interessa. O que define uma cidade, é mais que a quantidade de gente abrigada dentro de suas fronteiras, mas aquilo que esta gente faz dentro destes limites. Apesar das falhas inerentes ao processo, espero que Joinville se torne uma cidade cada vez melhor para ser e estar.