Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.       

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 2, 24/10/2014

Costureira

Recebi de um amigo o elogio:

– Você é sempre tão elegante. Veste-se muito bem.

Surpreendi-me com minha resposta:

– Obrigada. Eu poderia mesmo ter sido estilista. É que sou neta de costureira.

Veio imediatamente à minha memória a máquina de costura da minha avó. Era da marca Singer, de ferro batido, tampo de madeira brilhante, o pedal acionado pelo movimento dos pés. Eu gostava de abrir as gavetinhas e esmiuçá-las: os botões saltavam como estrelas, prateados, vermelhos, de madrepérola. Os carretéis de linha, a almofada com alfinetes de cabeça colorida, agulhas, fios de lã, lantejoulas, sianinhas, rendas, fitas, bordados, vidrilhos, miçangas, canutilhos, paetês. Um verdadeiro tesouro.

Interessei-me desde cedo por tecidos. Conhecia pelo tato e pelo nome a seda, o tafetá, a cassa, a casemira, o tergal, a popeline, o voal, o fustão, a flanela, o gorgurão, o tule, o organdi. Andávamos eu e ela pela 14, a rua do comércio da minha cidade e íamos apalpando as peças que eram abertas sobre o balcão. Alisávamos, examinávamos o caimento, fazíamos comentários sobre as cores e as estampas. Na loja “Mil Artigos”, do libanês “seu” Fauze, comprávamos os aviamentos, pois o acabamento da roupa era uma parte importante e delicada do ofício. É pelo lado do avesso que se conhece uma boa costureira, explicava muito séria a minha avó. Em casa, eu desenhava os vestidos em cadernos grandes, detalhando os recortes, as pregas e os babados. Ela traçava o molde no papel cor-de-rosa com um giz redondo; esticava e prendia o papel com alfinetes no tecido; cortava-o com energia e tesoura afiada em golpes cirúrgicos e certeiros. E depois de muita emenda, ziguezague e esforço, lá ia eu ao baile do clube com o vestido que idealizara e vira nascer com tanta entrega, dedicação e amor, pelas mãos habilidosas de minha avó.

Nunca esqueci de uma cena do livro Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, em que ele descreve o vestido maravilhoso que Narizinho usou no seu casamento com o Príncipe das Águas Claras. Era um vestido feito de cor do mar. Enfeitado com peixinhos azuis, dourados, de escamas furta-cor, compridinhos, roliços como bolas, achatados, de cauda bicudinha, de olhos que pareciam pedras preciosas, de longos fios de barba movediça. Narizinho viu como eram infinitas as formas dos habitantes do mar. Pareciam joias vivas, feitos por um ourives que trabalhasse com diamantes, opalas, turmalinas, pérolas, topázios, rubis e esmeraldas. Os peixinhos não estavam pregados no tecido. Estavam vivinhos, nadando na cor do mar como se nadassem n'água. O vestido variava sempre de cor e era tão lindo, tão lindo que a menina ficou tonta e começou a chorar. A vertigem da beleza.

A costureira era Dona Aranha, que cortava com a tesoura da Imaginação, cosia com a agulha da Fantasia e a linha do Sonho. Minha avó era uma espécie de Dona Aranha, de fada que criava miragens. E eu sentia o privilégio de ter uma modista aos meus pés, como se eu fosse uma baronesa.

Amava sim esse universo feminino da costura, do tear, do fiar, do tramar. Guardo, em minha essência, uma costureira, uma fiandeira trancada na mais alta torre do castelo, entre fusos e rocas. Alguém que urde, junta panos e ganchos pelo lado do avesso com linha dupla e grossa. Abaixo a cabeça concentrada sobre meu trabalho como a Rendeira, aquela musa do pintor Vermeer. Ou como Penélope preparando a mortalha que ela desfazia à noite para afastar os pretendentes, enquanto esperava o retorno de seu esposo Ulisses. Pego meus textos, e a palavra “texto” significa “tecido”, dobro, corto, prego enfeites, aplicações, brilhos, até criar um poema, um conto, um artefato que se pode vestir como uma malha, uma segunda pele.

Tudo isso porque um amigo me fez um elogio, disse que eu era elegante, que me vestia bem. É porque sou neta de costureira, respondi. Saudades das longas tardes na saleta de costura. Saudades da minha avó.

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