— Vou à posse, diz ela, voltando-se subitamente para o lado e me
encarando, séria. Não, essa não perderei...
Os carros desfilavam em suas pistas em direção à Zona
Sul. E eram rápidos, nervosos.
— Há muita diferença entre o 'Presidente do Brasil' e o 'Meu
Presidente' — conclui ela.
Continuamos a andar, na direção do mar.
Um grupo de meninos de rua passa por nós, perigosos. Mas nos ignoram.
Estamos razoavelmente bem vestidos para aquela hora de domingo, de verão
de domingo. Lembro-me de Luiz Bacellar, o poeta, com seu relógio
de ouro maciço.
— Vou à posse, fico da Esplanada, vejo o parlatório. Só
não encaro a idéia de ver FH passando faixa...
Dou gargalhada no ar.
— Como você queria a posse? pergunto. Sem a faixa? Além disso,
não foi a 'tomada do poder pelas massas'...
— Foi! — grita ela, que tinha bebido muito mais do que devia. Foi a tomada
do poder! Pelo voto, mas foi. Há quarenta anos eu queria a luta
armada, esmagar a classe dominante, lutar por uma sociedade sem classes.
Agora chegamos ao mesmo, mas pelo poder do voto.
Estávamos vindo do almoço no Lamas.
O calor carioca estampava sua face de metal depois do almoço. Domingo.
A juventude passava nua e morena, perto daquele casal que discutia
política como se bem jovem fosse. Dissemos frases de estilo,
frases feitas, palavras de ordem: 'Não passará!'
— Mas o regime continua 'capitalista', digo eu.
— Infelizmente, ela me corta. Infelizmente. Mas houve uma revolução
democrática.
— Quando
você era comunista...
— Ainda sou! Ainda sou.
— Você quer saber o que penso? Acho que...
— Você não acha nada! — ela me cala — Você é
um reacionário velho. Reacionário heideggeriano!, diz
ela, referindo-se à algo que escrevi na década de 70.
Eu me divirto, a sorrir.
Chegamos à praia.
Perto dali havia o prédio da UNE.
A tarde
vinha completa. Nas tardes de domingo em Manaus se ouviam os sinos.
Plangei, sinos! A terra ao nosso amor não basta...Já estávamos em frente ao Aterro.
Cansados de ânsias vis e de ambições ferozes,
Ardemos numa louca aspiração mais casta,
Para transmigrações, para metempsicoses!Cantai, sinos! Daqui por onde o horror se arrasta,
Campas de rebeliões, bronzes de apoteoses,
Badalai, bimbalhai, tocai à esfera vasta!
Levai os nossos ais rolando em vossas vozes!Em repiques de febre, em dobres a finados,
Em rebates de angústia, ó carrilhões, dos cimos
Tangei! Torres da fé, vibrai os nossos brados!Dizei, sinos da terra, em clamores supremos,
Toda a nossa tortura aos astros de onde vimos,
Toda a nossa esperança aos astros aonde iremos!(Escreveu Bilac, em 1919.)
Campas de rebeliões, bronzes de apoteoses,
Badalai, bimbalhai, tocai à esfera vasta!
Levai os nossos ais rolando em vossas vozes!