A primeira estrofe de 'Le bateau ivre' de Rimbaud (Trad. Augusto de Campos) assim canta:
Quando
eu atravessava os Rios impassíveis,
Senti-me libertar dos meus rebocadores.
Cruéis peles-vermelhas com uivos terríveis
Os espetaram nus em postes multicores.
Que significam esses 'Rios impassíveis'? Que 'eu' é um rebocador?Tinha ele - e o verso confirma - a completa consciência de que estava criando a Poesia, como criou, a poesia moderna, a poesia visionária, a poesia decodificada com o que em poética se fez, a super-poesia que aquele 'rebocador' arrasta para o Grande Oceano da Linguagem, o mar aberto de nossa imaginação incontrolável, do que se fez depois dele, do que se ousou escrever depois dele, do que depois dele se alargou, se experimentou, no horizonte das possibilidades daqueles 'cortinados de amestistas' de que falava Pessoa.
Ora, numa interpretação bastante ousada, poder-se-ia dizer:
O poeta genial arrasta consigo o cursor da poesia moderna, que ele inaugura
Quando
eu atravessava os Rios impassíveis,
Senti-me libertar dos meus rebocadores.
Aqueles
rios da força da Linguagem sempre estariam 'impassíveis'
no barco da arte até ele, bêbado da liberdade de
sua escrita, liberar, sair dos diques clássicos, românticos,
parnasianos, por onde atravessou, e dessas amarras de ferro se abrir,
partir, voar ( 'Então eu mergulhei nas águas do poema').
Todo o poema é, para nós, a 'arte poética' de
Rimbaud, o pioneiro.
Talvez nunca mais apareça um poeta como ele.
Por quê?
Quem, das amarras dos cais dos rios por onde conseguia passar o ritmo
de seu verso, a travessia do seu navegar e
discorrer - quem se soltaria das amarras linguísticas imagísticas
formais - quem mais se libertou que não fosse no caminho que
ele abriu e desvendou, ele?
Por quê?
Porque foi a partir dele que a poesia se desatou, para um panteísmo
diversificado, para adquirir a forma lógica interna,
a forma lógica própria, a forma lógica por onde
cada grande passo estabelece suas próprias caminhadas no desconhecido,
na
invenção, depois cada poeta teve de reinventar a própria
poesia, suas novas leis, expor suas novas normas, suas não-leis
e
não-normas.
Rimbaud canta a liberdade!
Confesso que leio e releio este poema, sempre, obsessivamente, e que ao
longo dos anos não me canso de ler, nem
esgoto a leitura, e a cada leitura me conduzo a um paraíso diferente
universo.
Cruéis peles-vermelhas com
uivos terríveis
Os espetaram nus em postes multicores.
De
onde Rimbaud vai tirar aqueles ' Cruéis peles-vermelhas '?
A aparente confusão do primeiro ponto se deve a que Augusto de Campos
traduziu [e muito bem] 'haleurs ' por
'rebocadores' e não ' sirgadores ' (ou puxadores com sirga,
com corda). O que, na realidade, fica mais verdadeiro, mas menos
apropriado ao poema.
A tradução de Augusto de Campos é, em cada caso, ótima,
perfeita, excelente. Mas criadora. Ou seja: inventa. E faz
bem.
Os 'sirgadores' - nautas que o levavam - mortos por índios, sacrificados
a flechadas, como disse Augusto Meyer.
A idéia de novidade, na época, estava associada, talvez,
à América, com seus peles-vermelhas.
Significa que o poeta, o tema, quer pular o Oceano, mergulhar no Futuro,
a saber, na América, no Novo mundo da
Nova Poesia a inaugurar, na poesia selvagem e indígena a falar?
De onde o Rimbaud vai tirar os índios senão do Porvir?
Rimbaud não deixa escapar o fato, a imagem, para dar ao quadro
uma enorme sensação de escândalo, o escândalo
do futuro, toda novidade é escandalosa: o sirgadores estão
nus, os postes são coloridos, ali especados, alvejados.
A confusão, ou melhor, a transferência entre 'rebocadores'
e 'sirgadores ' é a mesma que faz do sujeito do poema a
própria barca bêbada, o navio fantasma.
Sim, Rimbaud pintou o quadro do futurista futuro, a partir do tema do navio
fantasma (que na época era comum, e
ainda hoje o é).
Com ele morre o certo e se inaugura a aventura.