Tarde de domingo na praça. O menino chega com seu carrinho a vender-me
sorvete. Agradeço. Apesar disso, senta-se no banco, ao meu lado.
Tento continuar a leitura, mas parei num parágrafo mais difícil
que a interrupção me desconcentrou. Fecho o livro, puxo conversa.
Menino meio índio. 'Sou de São Paulo', diz. - Mora há
muito tempo aqui? - estamos numa cidadezinha qualquer, de Minas. 'Três
meses', responde. - Seus pais se mudaram... 'Não, corta ele, moro
só'. Acho estranho e resolvo aprofundar as indagações
pois estou diante de um grande personagem. Sério, problemas mentais
ou depressão. Teria treze anos. Diz que mora numa 'pensão',
num bairro que eu conhecia. 'Em frente ao Poliesportivo', acrescenta. Eu
conhecia o ginásio. Lembrei-me da casa em ruína, bem em frente,
que me chamou atenção pela bela arquitetura. Ali moravam
famílias, mendigos. Bem, nisso ele não mentia. Indagado,
e como era meio dia, respondeu que não costumava almoçar.
'Só lanchar', falou. Depois de acertar as contas'. Ganhava vinte
centavos por picolé vendido. Nos meus cálculos, e com sorte,
cinco reais por dia. Pagava cinqüenta reais de pensão; devia
quase dois meses. - Como veio para cá?, pergunto. 'De carona', disse.
Durante uma semana naquela praça de belos jardins o encontro. Às
vezes, trocávamos algumas palavras. No último dia pago seu
jantar, num botequim. Lá, traça dois pratos cheios, como
se há muito não se alimentasse, mostra-se satisfeito, agradecido
e, pela primeira vez, feliz. Estava na mesma roupa suja. Pressionado, conta-me
sua vida: A mãe, assassinada por seu pai quando tinha meses de idade.
Acolhido pelo barraco da avó, que bebia muito, abandonava-o com
fome. Os vizinhos chamam a polícia, o juiz o coloca numa instituição
de órfãos, onde adotado por uma senhora 'má, que me
batia muito'. Aos doze anos foge de casa, fica nas ruas de São Paulo.
No dia seguinte encontro-o e lhe digo que estava voltando para o Rio. Ele
estremece. Vi que sentia a perda. Sua expressão modifica-se, abandonado.
Dei-lhe meu telefone, que me telefonasse a cobrar, contasse como estava
sua vida.
Dez dias depois me telefona. Estava na Praça da Sé, em São
Paulo. Tinha voltado a ser menino de rua. Falamos muito pouco, rapidamente,
pois eu estava com pessoas de cerimônia na minha frente, no escritório.
Deve ter imaginado que não gostei do telefonema, rapidamente desligou.
Nunca mais voltou a telefonar. Tinha voltado a ser menino de rua. Eu me
senti inútil e, de alguma forma, culpado.