NINA SIMONE

Nina Simone nos remete a uma época e a um lugar sagrado - o lugar do passado. Todo passado é mítico, é mais do que foi, paira no alucinante espaço das nossas realizações mais altas, das nossas experiências mais excelsas.

Era uma noite de verão, aquela. Não uma noite qualquer, com qualquer lua, em qualquer lugar, com quaisquer estrelas. Mas aquela era a noite 'sobre a noite', a noite 'sem fim', a tão bela, a tão calma, a tão perfeita noite dos amantes.

Naquela noite eu poderia dizer, como Neruda:

"Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
"Escrever, por exemplo: “A noite está estrelada
"e tiritam, azuis, os astros, à distância”.
"Gira o vento da noite pelo céu e canta."

Eu não sei exatamente se aconteceu no início de 70 ou no final da década. Não sei, não sei, mas posso imaginar que de tudo me lembro, que nada daquela noite me foi perdido, me foi passado, me foi.

Vínhamos andando pela praia, sob a luz imaginária das ondas, eu e a pessoa amada. Ou mesmo, como na Divina Comédia, toda a luz vinha apenas dela, dos seus olhos, da sua aura de miraculosa doçura.

Foi Dante quem melhor soube falar da pessoa amada. Quando o Guia lhe diz: "Já me parece ver-lhe os olhos!" - ele se recupera de forças, se refaz em juventude. Antes de revê-la (no paraíso), no céu, "uma estreita abertura mostrava fulgores de estrelas", e ele mergulha em cismar, e em vigília, tomado por aquele tipo de sono "que muitas vezes é anúncio do futuro".

"Eu a quis (diz Neruda) e por vezes ela também me quis.
"Eu a tive em meus braços em noites como esta.
"Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.
"Ela me quis e às vezes eu também a queria.
"Como não ter amado seus grandes olhos fixos?"

Era aquela a noite sagrada, em que se caminha ao lado da pessoa amada sem destino, ou melhor, para o Destino, deixando na areia molhada um rastro de amor que se desfaz na proximidade das águas.

Só quem amou com profundeza sabe do que falo eu - o de andar à noite numa praia deserta, debaixo daquele oceano de diamantes estrelados, naquele cantar em que era louvação à divina essência da natureza humana.

Éramos deuses. Éramos jovens.

"Eu a tive em meus braços (diz Neruda) em noites como esta.

"Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito."

"E tu, leitor, (diz Dante), se não deres crédito ao que vou narrar, não me surpreenderás", pois nela noite "vi prodígios que ainda agora duvido ter visto" (Inf.. Canto 25, v. 46).

Tínhamos chegado num certo lugar de onde vinha uma débil luz como de lamparinas, e para lá nos dirigimos, abraçados, felizes como todos os amantes.

De onde vinha aquela canção? De quem era aquela estranha voz que dizia: "Ne me quite pas / Il faut oublier / Tout peut s'oublier / ... / Ne me quite pas", da música de Jacques Brel.

Sim, não me deixe. Era tudo o que queria ouvir, o que devíamos dizer-nos nós, ali. "Não me deixe".

"Ainda seguíamos ao longo do mar, movendo-nos como aqueles que, embevecidos, apressam apenas a mente, os pés tardamente movimentando" (Purg. Canto II, v. 10) e aquela voz nos seguiu, longínqua, pressagiosa, na promissão do que viria a ser, na pressuposição do fim.

Era a voz de Nina Simone, num bar de Armação de Búzios.

E agora que soube de sua morte, não lastimo aquela bela noite, a primeira e a última onde presenciei o sentido exato daqueles versos que por vezes está bem oculto.

Depois, muito mais tarde, na mesma madrugada, voltamos, e já não se ouvia a voz, mas alguém tocava o piano, enquanto algumas pessoas bebiam (as notas) nas mesas iluminadas a vela.

Tomamos uma mesa e eu fui ao balcão e perguntei de quem era aquela voz que ouvira antes, e o barman me mostrou o disco que, de volta para o Rio, consegui.

Mas não pude comprar a volta daquela noite eterna.

As coisas eternas não se repetem, porque o tempo muda, mudam os atores, as vontades, os tempos, os lugares.

A realidade toda é feita de mudança, disse o poeta, tomando sempre novas cores e novas qualidades.

"Porque em noites como esta eu a tive em meus braços,
"minha alma se exaspera por havê-la perdido.
"Mesmo sendo esta a última dor que ela me cause
e estes versos os últimos que eu lhe tenha escrito." (Neruda).

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