Você
conhece a luz dos dias de maio? Já viu o céu e aquela luz
filtrada em transparência luminosa, aquela luz azul, radiantemente
azul, de um azul tão alto, tão nobre, tão vasto? Sabe
de que é feito aquela imensa luz do universo em festa? Sabe de como
tudo se transmuda em cristais de límpido brilho dos pequenos córregos
que caem das altas montanhas como crianças bailarinas e jóias
lantejoulas? E sobre as cidades como sobre os campos a luz de maio deita
seu limo de íris e de poesia irisada. Já ouviu a música
da luz de maio? A "rosa de maio", os lúcidos arpejos dessa temporada
em que amamos e em que nosso espírito dança? Pois merecemos
viver o mês de maio e suas fragrâncias, nos sagrados bosques
de nossas florestas interiores e nos recolhimentos de nossos sonhos renovados...
A visão do mar me lembra uns versos de Valery:
"Que lavor puro de brilhos consome
"Tanto diamante de indistinta espuma
"E quanta paz parece conceber-se!
"Quando repousa sobre o abismo um sol,
"Límpidas obras de uma eterna causa
"Fulge o Tempo e o Sonho é sabedoria.
Valery
escreveu esses versos no longo poema "Cemitério marinho", tão
difícil de compreender, mas tão fácil de amar, de
sentir. Mas creio que a "função" do poema é esta:
a de ser sentido.
Terá a poesia alguma "função"? Precisa o poema ter
certa compreensão intelectual?
"Esse teto tranqüilo, onde andam pombas,
"Palpita entre pinheiros, entre túmulos.
"O meio-dia justo nele incende
"O mar, o mar recomeçando sempre.
"Oh, recompensa, após um pensamento,
"um longo olhar sobre a calma dos deuses!"
A tradução é de Darcy Damasceno e Roberto Alvim Correia,
que conheci na FNFi nos dias de estudante.
Olhar o mar é isso: ver a calma dos deuses, nas faiscações
de pasta de prata. O mar acende seus pandeiros de prata, sua luz miraculosa
azul.
"Ergue-se o vento! Há que tentar viver!
"O sopro imenso abre e fecha meu livro,
"A vaga em pó saltar ousa das rochas!
"Voai páginas claras, deslumbradas!
"Rompei vagas, rompei contentes o
"Teto tranqüilo, onde bicavam velas!"
E eu fico pensando como é belo este Rio de Janeiro e como me sinto
feliz em nele viver. Perigoso? Mas "viver é muito perigoso" já
dizia, se não me engano, o jagunço Riobaldo Tatarana. Nós
encontramos segurança onde? No céu, na terra, no fundo do
oceano, no alto das montanhas, a morte é certa e a vida incerta.
Apesar de ser uma cidade muito grande, o ar tem estado limpo e as luzes
do céu sem nuvens são azuis e profundas. O calor sumiu e
uma temperatura agradável atravessa as ruas. Para ter paz no Rio
de Janeiro basta não ler o noticiário, dar as costas à
realidade das coisas, ouvir a música dos verdadeiros cariocas notáveis,
como esta Clementina que ouço agora em surdina.
Conheci Clementina de Jesus no Teatro Casa Grande.
No meio do recital a eletricidade faltou mas ela não interrompeu
o que cantava e acenderam umas velas no palco e tudo ficou muito mais bonito
do que antes. Eu gosto de música "ao vivo", e para mim "música
ao vivo" significa sem microfone. A microfonia altera a voz, prejudica.
Gilberto Freyre só gostava de falar sem microfone em suas conferências.
Depois do show, encontrei Clementina sozinha na porta do teatro.
- Quer companhia? perguntei.
- Estou esperando quem vai me levar, me disse ela, com a sua voz de "mãe
de santo", grave.
Estava linda, vestida de branco. Clementina era uma mulher belíssima.
Não se encontra nas lojas de hoje um único disco de Clementina
de Jesus, a grande dama, a diva do samba carioca.
'Tesouro estável, templo de Minerva,
"Massa de calma e nítida reserva,
"Água franzida, Olho que em ti escondes
"Tanto de sono sob um véu de chama,
"- Ó meu silêncio!... Um edifício na alma,
"Cume dourado de mil, telhas, Teto!"