O Rio de Janeiro doente, piora. Entramos no início de fase crítica, quando o choque parece inevitável. A cidade progressivamente desfalece, faveliza-se. Desde a mudança da capital para Brasília. O fechamento da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro é um marco. Símbolo do fim. A economia é informal. O poder é “informal”. A vida é “informal”. Somos todos camelôs da vida cotidiana. Há mais favelados do que habitantes do asfalto? Quantos homens e mulheres têm aqui contra si algum processo criminal? Quem garante que esta situação não explode um dia, numa grande matança, numa geral confrontação armada? Já há uma separação, já há dois países distintos: a cidade e a favela. Um contra ou outro. O mundo da favela penetra no da classe-média através das empregadas domésticas e faxineiros, mas isso pode acabar ficando igual ao mundo Israel-Palestina. Morre-se mais no Rio do que lá? Vivemos confinados, ilhados?
Há um poema de Cassiano Ricardo, escrito em plena Guerra-fria, que diz:
Milhões
de crianças chorando
na noite esférica.
Por que choram?Um dia, uma empregada, mulher quase tísica, trouxe a filhinha escondida, pois não tinha naquele dia com quem deixá-la. A menina não tinha pai, as duas moravam num barraco de perigosa favela. A mãe deve ter feito graves ameaças à criança, que ficasse calada e quieta, que desaparecesse num canto, que sumisse, que se escondesse, pois eu, o bacana, o Mal, o Perigo, não a queria ali. Era uma criança muito frágil, magrinha e desnutrida, muito pequenina e bonita. A mãe já tinha perdido vários empregos por causa dela, pois ninguém gostava de ver criança estranha ameaçando quebrar os cristais da sala, mexendo em livros e discos. Acuada, ela se escondia debaixo da mesa da cozinha, no fundo de si mesma, quando inesperadamente e antes da hora eu perigosamente apareci. Cheguei e, infelizmente, fui ate a cozinha beber um gole d’água quando a descobri.
Não são
elas que choramÉ o futuro.
É a vida ainda não vivida.
São crianças no escuro
chorando por adivinhação
do acontecer.
CriaturasEu nunca pensei, nunca me imaginei, nunca me senti assim, ao ver-me no espelho. No meu tempo de marxismo, falava-se de luta de classe, mas da classe dominante não se falava, e sim da burguesia, dos detentores dos meios da produção material. Será a classe média, mesmo a classe média pobre, hoje, a classe dominante? E se a favela passar a nos ver como aquela menininha me viu um dia? E se a Rocinha descer contra o Leblon? E se nos virem com os “bacanas”, os responsáveis? E se disserem: Eles têm computador e TV a cabo, têm educação, cultura e livros, e nós não temos? Eles ouvem Wagner, Beethoven, lêem Proust e Pessoa, sabem escrever e são capazes de ler em vários idiomas? E nós? Que somos nós? Que podemos nós, que lemos nós, além de dar tiros, de assaltar, de matar, de nos asilar na favela e de enfrentar daqui nossos inimigos? E nós, que somos nós?
apenas de fato
por seus nomes
inscritos
no cadastro
eletrônicoo sul sem
norteviagem
sem
passaporte