A HORA MARCADA
Sim, ela escreveu um conto onde, com hora marcada, a narradora precisa
matar o personagem. Na realidade, aquela é a hora marcada de sua
análise, a hora do analista. A narradora está no meio da
condução do enredo de sua tele-novela, e o personagem...
bem, um transtorno. “Antes ele do que eu”, dizem as vozes do texto. Quem
choraria a sua morte?
Assim Leila Miccolis inicia o seu conto, e o seu livro de contos, “Achadas
e perdidas”, esta obra-prima da narrativa curta, enxuta, surpresa, numa
série de miniséries.
Justificativa para matar o personagem havia várias, como na novela
das oito da Globo, “Mulheres apaixonadas”: a novela andava “em fase minguante”,
“vítima da calmaria”, - a inesperada morte poderia despertar o torpor
do “respeitável público” – mas nada de sangue escorrendo,
de perseguição e morte, qual filmes americanos, ou na novela
supra, mas apenas uma mancha colorida (ou preta), como a marca de baton
da amante na gravata do cianoreto do coração – este conto
é um verdadeiro tratado de escrever um enredo, telenovela conto
ou romance, e de como agradar em duas páginas... Leila prestidigita
a narrativa com seus rápidos, irônicos comentários
bem-humorados... morrer, matar de morte indolor, mas a quem? Ao Pai? Ao
Macho-Poder? Ao Falo (o que decide a fala)? Ao poder do analista de decidir
quanto a Cura (se é que se dá?). Matar no divã “dia
da alta” do analista que a largava, mesmo ela, “não sendo anti-Salomé”,
a sua cabeça estava ali, a prêmio, sim, da narradora, no sofá
do analista matava a todos, e a todas, não os seus queridos personagens,
mas as ”super star” vaidosas, os galãs esnobes, legiões de
atores, autores, bibliotecas inteiras caíam cruelmente assassinadas
pela narradora, ou melhor, por mim mesmo, o seu cúmplice Leitor
que, “por razões inconfessáveis”, demitia, um a um, os seus
ídolos literários no divã da leitura das duas páginas
de “Hora marcada” de Leila Miccolis, cuja narradora, agora curada, pelo
analista, torna-se impotente pela ética, esse poder avassalador
de edítica manobra, o impasse editorial, profissional, da Ética
cura, da razão, que, ou pior, aguardava sua “ordem de comando”,
perguntando: “E então?”
“Não, decididamente não posso, não matarei...”, responde
o super-ego da Curada, da Justiça, a claridade da luz do dia em
que o seu analista lhe deu alta, mas no meio da estrutura da novela que
ainda estava no ar, e que precisava urgentemente acordar.
O conto funciona como prefácio dos outros do livro que vem com mini-séries
transformadas em deliciosos contos, e vem com filmes, os “curtas”
transliterados em meta-linguagem – Leila diverte na diversidade de sua
visão da realidade e do seu ofício de escritora, também,
de roteiros de tv. Que nunca tinha lido com tanto gozo a vida interna,
intestina, das novelas que Leila transforma com muita arte em meta-ficção.
Todos que estudam a técnica de criação de roteiros
não devem deixar de ler este extraordinário meta-texto, povoado
de narrativas e personagens femininas “ achadas e perdidas”, tais como
o feminismo as vê.
Mas a visão feminista de Leila Miccolis, entretanto, não
é anti-machista, raivosa, irada, rancorosa, mas muito bem humorada
e divertida de pós-modernidade (no que este termo tem de abrir caminhos
próprios pela experimentação da literatura “descartável”,
tal como na Internet, da escrita que não se leva a sério,
mas que faz pequenas obras-primas da vacuidade, da inocuidade do cotidiano,
etc).
O livro é, neste sentido, único. Surpreendente.