O mar azul.
Volto de Copacabana, onde
o vi. O mar, aquele mar azul.
"Vontade de cantar, mas
tão absoluta, que me calo, repleto", escreveu Drummond ao vê-lo.
Ao vê-lo belo. E azul. Tão azul.
O problema do mar, de sua
beleza, é que sua beleza é infinita, é azul, azul
profundo.
Oh, sim, estamos, entramos no Verão.Voltemos ao Verão. Que venha o verão. Como no início dos "Cantos", Ezra Pound diz:
E pois com a nau no mar,
Assestamos a quilha contra
as vagas
E frente ao mar divino içamos
vela
No mastro sobre aquela nave
escura,
Levamos as ovelhas a bordo
e
Nossos corpos também
no pranto aflito,
E ventos vindos pela popa
nos
Impeliam adiante, velas
cheias,
Por artifício de
Circe,
A deusa benecomata.
Que mar é esse? Este é o mesmo mar de Ulisses, o mesmo mar de Pessoa, de Camões, que canta:
Já no largo Oceano
navegavam,
As inquietas ondas apartando;
Os ventos brandamente respiravam,
Das naus as velas côncavas
inchando;
Da branca escuma os mares
se mostravam
Cobertos, onde as proas
vão cortando
As marítimas águas
consagradas,
Que do gado de Próteo
são cortadas
Desconhecido embora, um poeta amazonense, Sebastião Norões, escreveu, há décadas, em 1956, um soneto perfeito, exemplar, único, sobre o mar. Seu título, "Mar da memória":
Eu quero é o meu mar,
o mar azul.
Essa incógnita de
anil que se destrança
em ânsias de infinito
e me circunda
em grave tom de inquietude
langue.
O mar de quando eu era,
não agora.
Quando as retinas fixavam
tredas
a incompreensível
mole líquida e convulsa.
E o pensamento convidava
longes,
delimitava imprevisíveis
rumos
viagens de herói
e de mancebo guapo.
Quando as distâncias
fomentavam sonhos.
Rebenta em mim essa aspersão
tamanha
que a imagem imatura concebeu
de quando o mar era meu,
o mar azul.
No verão, o brilho
intenso, os ares claros, as nuvens brancas. O calor é pegajoso,
pecaminoso.
Quando jovem, morava perto
do Arpoador. Domingos de sol, festivos, de verão extremo.
O sol ficando forte, vem
a vida, as canções. O metalizado brilho do passado estandartiza,
nos ares, as claras visões dos cânticos do sol. É o
verão do mar, que para o amor se vai abrir. Quando amar se espera.
E o mar, o mar azul, "essa incógnita de anil que se destrança
/ em ânsias de infinito e me circunda / em grave tom de inquietude
langue".
É langue todo verão,
e assim esqueço, me esqueço, penso que ainda jovem. Me lembro
dos dias de verão do Pier. Quem tem sonhos não morre. "O
mar de quando eu era, não agora. / Quando as retinas fixavam tredas
/ a incompreensível mole líquida e convulsa. / E o pensamento
convidava longes."
O mar convida longes. Atravessa
o longe, a linha, o afastado horizonte. Delimitando 'imprevisíveis
rumos / viagens de herói e de mancebo guapo."
Naquele tempo, acampávamos
nas praias desertas, e em desertas praias amávamos.
Um dia, em Búzios,
um grande e luxuoso barco ancorou na praia onde acampávamos, na
noite de Reveillon. De longe podíamos ver mulheres elegantes, os
garçons, as champanhas. Fogos de artifícios. Ao nascer do
sol, alguns vieram, num bote menor, até a praia. Algumas mulheres,
de vestidos longos e brancos, ainda com as jóias, jogaram-se no
mar. Outras, completamente nuas. Era a Era de 60, onde tudo se permitia,
mesmo o ser feliz, nas « marítimas águas consagradas,
/ que do gado de Próteo são cortadas."
E «nossos corpos também
no pranto aflito, / E ventos vindos pela popa nos / Impeliam adiante, velas
cheias». Sim, sim. « Por artifício de Circe, /
A deusa benecomata."
Norões nasceu no dia
7 de março de 1915, em Humaitá, Rio Madeira, Amazonas. Mas
estudou em Fortaleza, daí sua fixação no Mar. Aos
18 anos voltou para Manaus, fez Faculdade de Direito. Foi meu professor
no Colégio Estadual. Chefe de Polícia do Estado, onde protegeu
o comunista Jorge Amado. Era professor de Geografia.
A geografia do Mar.
Quando éramos jovens,
Norões foi nosso professor e Mestre. Posso vê-lo, atrás
das baforadas de cigarro. As lentes grossas. Norões impressionava,
carismático, culto. Nunca pensei que faria sua "apresentação",
anos mais tarde, quando escrevi um prefácio para a segunda edição
de seu livro "Poesia Freqüentemente", de 1956. E é uma surpresa
sempre que releio seu livro, sua poesia está mais viva ali, sua
poesia é azul, lá onde o horizonte mergulha. E desponta.
O mar azul.