São
três colheres. Três colheres de prata. Sobre o aparador da
cozinha. Isso é tudo. Tudo o que coube do legado de minha avó
Antonia. Será que, de toda dor, de toda perda, uma vida, só
isso é o que sobra? Será que, além das fotografias
velhas, algo há mais que vai permanecer? Onde, onde ficou aquilo
tudo que, por tanto tempo, naquela época, prezávamos e que
era para nós tão precioso e familiar, próximo e forte?
Que aconteceu com o que só como fosca lembrança se esvai
na fímbria da saia do horizonte em poente de inverno?
Lembro-me do último poema de Cecília Meireles, o "Cantar
de vero amor", dedicado a seu companheiro, Heitor Grillo, que diz:
I
ASSIM aos poucos vai sendo levada
a tua Amiga, a tua Amada!
E assim de longe ouvirás a cantiga
da tua Amada, da tua Amiga.
Abrem-se os olhos - e é de sombra a estrada
para chegar-se à Amiga, à Amada!
Fechem-se os olhos - e eis a estrada antiga
a que levaria à Amada, à Amiga.
(Se me encontrares novamente, nada
te faça esquecer a Amiga, a Amada!
Se te encontrar, pode ser que eu consiga
ser para sempre a Amada Amiga.
II
E assim aos poucos vai sendo levada
a tua Amiga, a tua Amada!
E talvez apenas uma estrelinha siga
a tua Amada, a tua Amiga.
Para muito longe vai sendo levada,
desfigurada e transfigurada.
Sem que ela mesma já não consiga
dizer que era a tua profunda Amiga.
Sem que possa ouvir o que tua alma brade
que era a tua Amiga e que era a tua Amada.
Ah! do que disse nada mais se diga.
Vai-se a tua Amada - vai-se a tua Amiga!
Ah! do que era tanto, não resta mais nada...
Mas houve essa Amiga! mas houve essa Amada!
Cecília
compôs esses versos em São Paulo, em janeiro de 1964. Ela
deve ter escrito esses versos com lágrimas nos olhos. Estava morrendo,
consumida por um câncer. Toda vez que leio esses versos me confronto
com o horror da morte. Ela os escreveu em janeiro e faleceu em 9 de novembro,
do mesmo ano, no Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro. (Tenho
horror a hospital, essas casas de tortura – passo mal só em avistá-los
de longe: no mundo que minha imaginação figura eles seriam
completamente abolidos – todas as pessoas teriam o direito de morrer em
paz, em suas casas, de morte natural).
De minha avó Antonia Cellis sobraram três colheres de prata.
São três colheres maciças, nobres, pesadas, como era
seu caráter. Nelas está ainda escrito, bem forte, "Christofle".
O fabricante francês: Charles Christofle. Era uma época de
riqueza, para ela. Antes de escrever esta crônica visitei o belo
site http://www.christofle.com/. Ainda hoje charmoso, elegante, caro. Desde
1830. Minha família conheceu momentos de grande riqueza, e momentos
de quase miséria. Meu avô Maurice, alsaciano, grande comerciante
de borracha no Amazonas, terminou sem nada. São três colheres
«Chinon», estilo Louis Philippe, típico do Século
XVIII e tradicionalmente chamado "Vieux Paris". O Chinon se caracteriza
pela sobriedade. Existe em Christofle prateado e em prata maciça.
Lição do site, lição da Internet.
São três colheres... "Ah! do que era tanto, não resta
mais nada..." - só três colheres de prata, sem que se possa
ouvir como era profunda a tua alma. « Sem que ela mesma já
não consiga dizer que era a tua profunda Amiga».
E assim aos poucos foi sendo levada, a minha amiga, a minha amada, "Ah!
do que disse nada mais se diga".
Abrem-se os olhos - e é de sombra a estrada
para chegar-se à Amiga, à Amada!
Fechem-se os olhos - e eis a estrada antiga
a que levaria à Amada, à Amiga.
Tudo aquilo era se esvaiu, já me parece longínquo, fina gaze. Meu Deus! A vida é mesmo um sonho, uma visão de um mágico show. Triste ou bela, sólida ou frágil, "a vida leva-a o vento", escreveu poeta João de Deus (1830-1896), no seu "Campo de flores":
A vida é o dia de hoje,Não, nada,ninguém define a vida que esses versos escorregadios na fluidez da vida, o dia de hoje, o que mal soa, a sombra o que foge voa nuvem sonho desfaz neve fume se esvai um momento um pensamento vento cai corrente sopro leve ave ares pena caída - "a vida o vento a levou!". João de Deus, irmão espiritual de Cecília, como ela diz:
a vida é ai que mal soa,
a vida é sombra que foge,
a vida é nuvem que voa;
a vida é sonho tão leve
que se desfaz como a neve
e como o fumo se esvai:
A vida dura um momento,
mais leve que o pensamento,
a vida leva-a o vento,
a vida é folha que cai!A vida é flor na corrente,
a vida é sopro suave,
a vida é estrela cadente,
voa mais leve que a ave:
Nuvem que o vento nos ares,
onda que o vento nos mares
uma após outra lançou,
a vida – pena caída
da asa de ave ferida -
de vale em vale impelida,
a vida o vento a levou!
Foi-se-me pouco a pouco amortecendo
a luz que nesta vida me guiava,
olhos fitos na qual até contava
ir os degraus do túmulo descendo.Em se ela anuviando, em a não vendo,
já se me a luz de tudo anuviava;
despontava ela apenas, despontava
logo em minha alma a luz que ia perdendo.Alma gémea da minha, e ingénua e pura
como os anjos do céu (se o não sonharam...)
quis mostrar-me que o bem bem pouco dura!Não sei se me voou, se ma levaram;
nem saiba eu nunca a minha desventura
contar aos que inda em vida não choraram ...(As três colheres de prata me olham do aparador.)