O SHAKESPEARE DE GIOVANNI EMANUEL NO TEATRO AMAZONAS EM 1899

             Em "Fastígio e sensibiliudade do Amazonas de ontem" (Manaus, Sérgio Cardoso Ed., 1960), conta Genesino Braga que Giovanni Emanuel desembarcou no cais da Ponte dos Catraieiros, em Manaus, no dia 12 de maio de 1899, acompanhado de "formosíssima dama", Nella Montagna, primeira atriz da Companhia Italiana de Dramas e Tragédias.
             Quem era?
             Livros há, hoje, e teses sobre ele. Como o recente estudo, de Armando Petrini, "Attori e scena nel teatro italiano di fine Ottocento. Studio critico su Emanuel e Giacinta Pezzana" (Torino, DAMS Università degli studi di Torino, 2002).
             Grande intérprete de Shakespeare, Giovanni Emanuel (Morano Po, Casale, 1848 – Torino 1902) revolucionou a cena italiana. Pela década 1882-93, enveredou no modo do naturalismo poético de representar, alcançando sucesso máximo de crítica e de público, apreciado como diretor e como ator.
             Em carta para Felice Cavallotti, de novembro de 1886, ele diz: " Eu estou usando os ombros, o cérebro e o coração de Otello, e isso me dá um trabalho enorme, pois estudo a fé de um mártir. Quero fazer a sua mais polêmica interpretação»: e as críticas sobre o seu modo de recitar o Otello assumiram imediatamente o tom de réplicas. Provavelmente é este o motivo por que, com grande efetividade, ele assumiu em cena o seu aspecto poético naturalista: e isto em parte explica os julgamentos contraditórios da sua arte de representação.
             Diz–se dele ter "a consciência de quem sabe ter levado a todos por um caminho artístico novo, distinto, uma "novidade", naquele modo de recitar em que ele se diferenciava claramente - pelo menos nas intenções". "O seu caráter original e todo especial do seu talento, o seu ecletismo curioso, o seu método faziam algo incomparável". Ele era inconstante e descontínuo, e assim parecia absolutamente insuperável". Ou seja, passava dos cumes mais luminosos da arte subitamente para entrar como um meteoro no terreno familiar. "Suas interpretações pecavam por ímpetos súbitos; mas seus momentos bons eram tão bons que indeléveis permanecem gravados na mente do público e dos companheiros" (UM. De Sanctis, Caleidoscópio glorioso, Florença, Giannini, 1946, pp.23-24).
            Contraditório, dizia  Emanuel: "Eu sou o contrário do modo de recitar e interpretar Shakespeare de Ernesto Rossi e de Thomas Salvini. O primeiro faz de Hamlet algo romântico, e o segundo faz de Otelo um caráter trágico".  O ator, diz, nunca tem absolutamente que ser um romântico na recitação trágica, mas tem que recitar com a verdade. Shakespeare não tem nenhum romantismo nem tragédia, sua grandeza está na capacidade de criar verdadeiros caracteres; Shakespeare punha a verdade maior na literatura dramática, e por isto será eterno.
            Emanuel começava a traduzir-se a si mesmo, deixando toda a crueza do idioma shakespeariano; exagerava bastante a modernidade vulgar de certas expressões, o que fazia um efeito diferente. Ele era conhecido como o líder do naturalismo teatral na Itália, ator experimentalista, aparecia como uma escola nova. "O artista dramático tem que representar todo o caráter do homem, banindo da cena as fantasias e o teatralismo".
            Sua preocupação principal consistia em humanizar o herói trágico. Dirigindo-se a atores jovens, Emanuel escreveu, em 1887: você estuda bem a parte, as paixões, o caráter e não se deixa intoxicar da teoria barroca e ridícula ... você deve ser uma estrela e chorar, mas com naturalidade e verdade. Nele, "a idéia de uma naturalidade interpretativa, a  simplicidade da natureza como forma nova de sublime, o recorrer a um antropomórfico procedimento e a uma lógica simétrica, fundada na relação confidencial, sensual e horizontal era o motivo da arte".
            Ele promoveu uma luta contra o convencionalismo "teatral". Mas, como todos os artistas, sabia que mesmo no naturalismo o teatro não é capaz de simplesmente reproduzir a realidade,  a qual ele mesmo olhava como fonte de inspiração para sua recitação. Por isso escreve: "Minha arte é uma harmonia entre verdade e beleza. Se fosse mais verdadeiro seria naturalismo, se não verdadeiro aquela beleza seria idealismo".
            Contudo, como Zola, mantém a tarefa da nova geração de artistas que pretendiam substituir o "homem metafísico" pelo "homem fisiológico": "nós imitamos, nós imitamos o homem" - Emanuel escreve - " levamos o processo para a natureza". Em outra carta, Giovanni Emanuel descreve o equilíbrio contraditório entre a consciência da impossibilidade do teatro de uma reprodução  "fotográfica" e a defesa do naturalismo, polêmica que apareceu na "Gazeta Literária", em 1887, quando o jornalista Giuseppe Benetti defendeu o novo método naturalista contra as velhas escolas clássica e romântica. "Giovanni Emanuel faz a arte neurótica que, para nós, reflete o verdadeiro da vida que se vive. Nosso Teatro - Benetti escreveu - precisa de atores que recitem a fala como falamos nós", ao que alguém replicou que aquilo "era fotografia da vida ordinária, que reduziria a grande arte à pobreza de uma reprodução". A esse argumento Benetti respondia que a arte realista não pretendia a reprodução fotográfica de uma parte da vida, mas da vida inteira, de toda nossa vida. Ou seja, o fundamento da poética naturalista era estabelecer e retirar do cotidiano da vida  o que é contemporâneo, fazendo uma interpretativa sintética dos elementos típicos da vida cotidiana! - equilíbrio instável entre o processo de reprodução e a tensão do trabalho artístico elaborado do estilista. O sucesso de público de Emanuel comprovava que o público compreendia e aceitava isso.
            Assim, Domenico Lanza escrevia na "Gazeta", que Emanuel não recita, mas fala, e grita como um homem, não como um ator. Isso é tudo aquilo que se pode dizer dele. Uma recitação de Emanuel pretende representar a vida e ser capaz de abandonar o "convencionalismo" teatral, Emanuel não passa pela ênfase, a pomposidade, a afetação e a frieza. Seu processo poético de ator se revela aqui dentro das convicções artísticas de Émile Zola, o líder do movimento naturalista europeu. Um dos objetivos principais disso é sentir realmente sua luta contra as convenções artísticas. Zola escreve que o naturalismo é o retorno à natureza do homem, à observação direta, a anatomia exata. Que é representar? O artista, de acordo com Zola, não é exatamente um criador de obras, pelo contrário o que ele faz é registrar alguns "fatos":  O trabalho é o mesmo, para o escritor e para o cientista: ambos tiveram que substituir as abstrações pela realidade, o empirismo de fórmulas por análises rigorosas. De tal modo, continua Lanza, não mais o caráter abstrato das obras, não mais falsas invenções, não mais o absoluto, mas sim o revelar reais caracteres, a verdadeira história de cada um, o relativo, o quotidiano da vida. E ainda passar pela pressuposição de que a natureza se basta, que ela é bastante e necessária para aceitar sem modificar. Que é bela em si mesma, conclui.
            Este paradoxo faz Zola afirmar preferir "a vida à arte", e tem eco em Giovanni Emanuel.  Em uma entrevista ele diz: "Otello parece para mim um homem, realmente humano, vivo, de carne como nós dois". Ao que o interlocutor retrucou: "Ah! ah!... você quer os verdadeiros homens no teatro, meu Amigo?... teatro é convenção". "Sim, respondeu Emanuel, mas Shakespeare não é teatro, é vida".
            E então, ao interpretar Otello, se esforça Emanuel o mais possível para evitar tudo que era reconhecido como convencional. O repórter da "Gazeta de Turin" disse: "Qualquer pessoa, sem concessão para o efeito, sem qualquer redundância; sem declamações, sem vôo, sem desesperos violentos, nenhum grito nem rugido. [...] Ele era simples, fundo, terminal, sóbrio, efetivo, verdadeiro, mas com grande efetividade.
            Em "O trabalhador", de 1887, um crítico teatral informa de uma récita em Buenos Ayres: "Ele não deu mais ao caráter aquilo que só é percebido na cena de um teatro, ele era antes um Otello dos nossos dias, não somente no solo trágico, carregado, possível somente num palco; o caráter que nos deu o Emanuel, que nós vimos agir, era como se estivesse real, em carne e osso. Ele estava lá, realmente, em cena".

***

            Diz Genesino que Emanuel desembarcou do navio "Rio Amazonas" e foi levado para a sede do "Sport Clube Amazonense", na Rua Municipal, onde foi homenageado. Houve discursos e brindes. Depois Emanuel escreveu, no livro de visitas: "Vivamente impressionato dell´accoglienza dello Sport Club nel giorno Del sua arrivo. Manaus, 12 de Maggio de 1899. Giovanni Emanuel".
            Seguiu-se um almoço, oferecido a ele no Hotel Cassina, onde se hospedou (como eu gostaria de saber do cardápio...).
            Manaus, diz Genesino Braga, era uma cidade de 50 mil habitantes, «encravada no meio da mais densa, vasta e indomável floresta, mas tinha uma sociedade de nível cultural elevado". Na realidade, havia muito dinheiro ali, da extração da borracha: o governo estadual custeou a viagem de toda a Companhia e pagou duzentos contos de réis para que ela se exibisse, uma fortuna!, em língua italiana, ao preço de sete mil réis a cadeira!
            Cito, mais, Genesino Braga:  "A Companhia Italiana de Dramas e Tragédias deu vinte e nove espetáculos no Teatro Amazonas, representando as seguintes peças: "Kean", Dumas, pai; "A morte civil" (3 vezes), Giacometti; "Otelo", Shakespeare; "O grande industrial" (3 vezes), Ohnet; "O senhor diretor", Bisson e Carré; "Hamlet" (3 vezes), Shakespeare; "Carnaval de Turim" (2 vezes), Vato; "Os dois sargentos", D'Aubigny; "O mercador de Veneza", Shakespeare; "Niobe", Paulton; "Nero", Cossa; "As duas órfãs" (3 vezes), D'Ennery e Cormont; "O casamento de fígaro" (2 vezes), Beaumarchais; "Pátria" (2 vezes), Victorien Sardou; "O rapto das sabinas" (2 vezes), Moser e Schontan; "Rei Lear", Shakespeare; "O Duelo", Ferrari; "A Dama das Camélias" (2 vezes), Dumas, filho; e "Romeu e Julieta", Shakespeare."
             E concluo parafraseando o excelente Genesino Braga: Giovanni Emanuel e sua Companhia partiram de Manaus a 6 de julho do mesmo ano de 1899 no vapor "Continente". Ele ficou quase dois meses em Manaus. O seu nome está gravado em uma placa de mármore, nos corredores do Teatro Amazonas, como a pedir mais respeito e mais veneração para aquela casa ilustre, que soubera entender e aplaudir, o mais assombroso dos teatros: o "shakespeareano!"

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