Sim, depois de alguns anos vivendo só da Internet, este cronista
volta a ter coluna em jornal de papel. No "Correio do Sul". De Minas.
No começo, mantive coluna diária em jornal. Era jovem, tinha
energia de escrita, vontade de trabalho. Ainda hoje releio com receio os
poucos recortes que restaram, que se salvaram da mudança da amiga
que os guardava. Foram defenestrados como lixo, se possível fosse
jogar lixo, papel velho, pela janela, como a palavra sugere. Destruídos
os recortes, certa vez passei uma semana em consulta aos velhos jornais
da época que sobreviveram à traça e tempo.
Naquela época heróica, nós nem passávamos pelo
chefe de redação. Íamos diretos ao linotipista. Aquele
o tempo do linotipo. Coisa de chumbo. Sempre à noite que vínhamos
nós, originais no bolso. Havia gente que escrevia diretamente no
linotipo.
O trabalho no jornal entrava noite a dentro. Os ruídos das impressoras
eu os ouço até hoje, e o cheiro de tinta ainda me impregnam
os sentidos.
Em 1960, cometi tolice exemplar. Por meio do diretor comercial, de nome
Senna, sou convidado para ingressar no corpo da redação da
TV Rio. Não aceitei. O trabalho era noturno, sem hora para terminar,
e eu tinha aula pela manhã na Nacional de Filosofia da Universidade
do Brasil, onde me formei em letras. Naquele tempo parece que ali devia
trabalhar Walter Clark e o Bôni, ambos da Globo. Eles deviam ter
a minha idade. No pouco tempo que ali estive vi gente como Juscelino Kubstchek.
Deixei de trabalhar na TV, passei a lecionar no subúrbio. Opção
idiota.
O ambiente de jornal era ótimo, naquele tempo. Não só
se discutia política, mas literatura. Foi lá que ouvi Hemetério
Cabrinha, o poeta, a recitar Castro Alves: "Era um sonho dantesco... o
tombadilho". Sim, ele era dramático, principalmente quando entoava
o seu "Falando a meu coveiro", um dos seus mais belos poemas:
É aqui neste lugar, ao pé deste cipreste,
junto a este mausoléu. Pega uma enxada, cava
sete palmas de chão! Anda depressa, grava
no teu semblante mudo o riso que escondeste!
Abre o meu leito eterno... O meu lugar é este!
Quero nele abafar minha paixão escrava!
Quero enterrar-me logo... a vida já me agrava...
Depressa! A minha dor de dores se reveste!
Alarga-a mais um pouco, afasta mais a areia!
Ela, assim como está, torna-se muito feia,
profunda-a mais... trabalha! Este dinheiro é teu!
Que é isso? Um crânio aí? Dá-mo, quero beijá-lo.
Limpa-lhe bem o pó! Dá cá, quero estudá-lo
Como alguém algum dia há de estudar o meu!
Sim, ele era dramático. Dantesco e shakespeariano. Voz forte, gestualidade
grandiosa, tensa, teatralidade assustadora, densa. Olhos ensandecidos de
poética.
Aquela era a época das polêmicas. Polemizávamos em
versos (!) com o poeta Benjamim Sanches. Assinando Calixto Diniz. Sanches,
uma ocasião, respondeu assim: "Cá li isto que você
escreveu..." Ele era autor de "Argila" (1953), um livro cor de barro. Certa
vez, encontrei a edição quase inteira, esquecida, não
vendida, mofando, morrendo num canto do chão de velha e empoeirada
livraria. Sanches era melhor contista. Escrevia bem. Não mereceu
ficar esquecido. Sua poesia é como em "Transe":
Em êxtase fitava o céu molhado,
Umedecidos por um cinza brando
E o sangue nas artérias congelado,
As lágrimas no rosto vão rolando.
No espaço um olhar vívido cravado,
O pensamento no ar gesticulando,
Do meu céu ao inferno, condenado,
Eu andei sem saber se estava andando.
Quando saio daquele sobressalto,
Como quem sonha mesmo quando acorda,
Tenho minha alma presa lá no alto,
Vendo o meu corpo nesta lassidão,
Sob o peso das dores que transborda,
Um monstro se arrastando pelo chão.
("Argila", pág. 95, Manaus, 1957).