Escreveu
Deleuze que “se aproxima o tempo em que não será mais possível
escrever um livro de filosofia como desde há muito se faz”.
A pesquisa dos novos meios de expressão filosófica, disse
ele, foi inaugurada por Nietzsche e, hoje, deve ser demandada em relação
à renovação de certas outras artes, por exemplo, o
teatro e o cinema.
Fui ver o filme de Wolfgang Petersen, “Tróia”.
Saí satisfeito.
Não, não esperava que Petersen contasse a guerra de Tróia
como o fez Homero. Aliás, aquela guerra se origina antes da Ilíada.
Antecedentes que passo a contar.
* * *
Certa
vez, estando os deuses reunidos em banquete, apareceu a deusa Discórdia
que lançou sobre a mesa uma maçã de ouro, “endereçada
à mais bela”.
Houve grande alvoroço e contenda entre as deusas.
Juno logo saiu da disputa, pois não ficava bem que ela, a toda poderosa
mulher do deus dos deuses, entrasse naquela competição.
Mas duas deusas, Afrodite e Atena, resolveram competir.
Para decidir a questão, escolheram como juiz um humano, o mortal
príncipe Alexandre Páris, de Tróia, que entendia de
mulher mais do que todos.
As duas deusas, separadamente, tentaram subornar o juiz.
Atena prometeu-lhe a vida eterna, que o jovem não quis. Teve medo
da Eternidade, do Desconhecido, do Eterno.
Vênus, mais sedutora dos homens, assegurou-lhe a rainha Helena de
Esparta, a mais bela das mulheres de seu tempo, fidelíssima a seu
marido, o bravo rei Menelau.
Sim, Vênus enfeitiçou Helena. Por isso ela traiu o marido
e fugiu com o amante.
O maior crime de Paris não foi somente ter roubado a rainha, mas
ter ofendido aos deuses “lares”. Porque foi recebido por Menelau, em casa
desde, com honra e circunstância. Traição é
ser recebido por alguém em casa e trair a hospitalidade.
* * *
O
filme é bom, mas Aquiles não era um homem. Era um semi-deus,
protegido pelos deuses. A luta Heitor – Aquiles é luta entre deuses,
os deuses estavam lá, invisíveis.
Conta Homero que, quando, certa vez, estavam frente a frente, Aquiles diz:
“Aproxima-te, para chegares mais depressa a tua perda e a teu fim!” – Ao
que respondeu Heitor: “Filho de Peleu, não pretendas como se eu
fosse uma criança, amedrontar-me com palavras etc” – disse, e atirou
a lança que Atena desviou de Aquiles com um sopro. A lança
volta milagrosamente para os pés de Heitor. “Então Aquiles,
impaciente, ardendo por matá-lo, arrojou-se gritando medonhamente”.
Mas Apolo salva Heitor, envolvendo-o numa névoa. Três vezes
Aquiles feriu em vão o espesso nevoeiro. Na quarta vez este “se
precipitou, como um demônio terrível”. Gritava que Heitor
ainda estava vivo devido a Apolo, a quem o troiano orava. “O sangue aquecia
a espada” disse Homero, Aquiles era cruel e “de furiosa paixão”.
Antes do combate final, conta ainda Homero, o pai rei Príamo arrancava
os cabelos brancos em desespero para que Heitor não fosse. E a mãe
mostrava-lhe os seios (onde mamou), num gesto de suprema dramaticidade.
Nada daquilo convenceu Heitor a não ir à luta. Ele “sabia”
que ia morrer.
Diferentemente do filme, foi esperar Aquiles, que se aproximava. Quando
este chega, “em torno dele brilhava o bronze, como o clarão do sol
nascente”.
Conta a “Ilíada”: Avistando-o, pôs-se Heitor a tremer e fugiu,
estarrecido.
O outro se atirou a ele, “como o falcão da montanha persegue trêmula
pombinha”. A cena era humilhante. Todos viram Heitor correr “trêmulo,
ao pé do muro de Tróia”. Três vezes correram ao redor
da cidade, um perseguindo o outro. Os deuses e os homens, todos viam aquilo.
Até que Atena se precipita do céu para dar fim à cena.
Homero diz que Heitor tentava passar por perto do muro da cidade, para
ver se “do alto o protegiam com dardos”. Mas o outro o impedia.
Na quarta volta, Zeus, no Olimpo, usou da balança do destino e viu
que Heitor morreria. Atena convence Heitor a parar, a enfrentar Aquiles.
Heitor tenta inutilmente um acordo. Aquiles atira sua poderosa lança
contra Heitor. Este a evita. Atena devolve a lança para Aquiles,
sem que o outro veja. Heitor lança no centro do escudo que defende
Aquiles e se desespera porque fica desarmado. Diz Homero que ele grita
por Deífobo, pedindo outra lança. Mas Deífobo não
está mais lá. Então o troiano vê que foi enganado
por Atena e prevê sua morte. Não, não quer morrer
assim, sem coragem. Com sua espada ataca o inimigo, estava coberto
de bronze, usava a armadura arrebatada de Pátroclo, primo e “amante”
de Aquiles, que ele havia matado. A armadura tinha um ponto frágil,
acima da omoplata – e foi logo ali que a lança de Aquiles penetrou,
atravessando o pescoço.
“E a morte o envolveu”.
Todos em Tróia viram seu cadáver ser profanado e arrastado
diante da cidade.
Foi assim que morreu Heitor, o domador de cavalos.
Sim, “a natureza envia o filósofo à humanidade como uma flecha;
ela não mira, mas espera que a flecha fique presa em algum lugar”,
escreveu Nietzsche. O filme de Wolfgang Petersen faz pensar.
Tem algo a dizer. A sinopse do filme diz: “ Dois mundos entrarão
em guerra por honra e poder. Milhares perecerão em busca de glória.
E, por amor, uma nação será reduzida a cinzas.”