QUEM MATOU FRANÇOISE SAGAN?
Depois da morte de Françoise Sagan, resolvo reler "Bom dia tristeza". Encontro o livro num sebo, por 5 reais. Terá o mesmo interesse a despertar-me 43 anos depois? Você, jovem leitor/a, sabe o que significa ter lido um livro há 43 anos? Naquela noite, sábado, releio-o, quase de uma só assentada, - sim, ainda é extraordinária narrativa. Fico preso ao texto e me pergunto - onde reside a magia, de onde vem o seu o magnetismo? Sagan é imitadora de Proust. Seu apelido (ela se chamava Françoise Quoirez) deriva do Príncipe de Sagan, personagem de Proust. Entro na madrugada com o interesse de um adolescente. A narrativa desaparece entre as impressões e reflexões de uma escritora proustiana. Trama simples, enredo quase inexistente. Sua arte reside no texto, na arte narrativa, fácil, clássica. E nos semas, sintomas, alusões. Sagan cita Oscar Wilde: "O pecado é a única nota de cor viva que subsiste no mundo moderno". Alguém já disse que não é de bons sentimentos que se fez a literatura. A narradora sente um irresistível amor pelo pai, e grande sedução por Anne, a noiva do pai, por quem nutre amor e ódio, e muita competição. Ambos de meia idade. O Pai e Anne fazem desaparecer o belo jovem Cyril e a deslumbrante loura Elsa, uma garota de programa de luxo, com quem o pai se diverte. A narradora adolescente consegue armar um esquema que tira Anne da vida de seu pai, com quem ia casar-se. Anne sai desesperada e na sua saída intempestiva envolve-se e morre num desastre automobilístico. Mas, com ou sem culpa, a narradora, após sua morte, se lembra de Anne como uma espécie de amante que ela não teve (foi entretanto sua tutora). E continua rindo das novas conquistas, junto com seu pai, seu cúmplice. Torna-se, por contágio, amante de um primo de Anne. Pai e filha falam de Anne "com precaução, o olhar desviado, com medo de nos magoar ou de que algo, vindo a rebentar em um de nós, nos levasse às palavras irremediáveis. Essa prudência, essa doçura recíproca tiveram a sua recompensa. Logo pudemos falar de Anne como de uma pessoa querida com quem poderíamos ter sido felizes, mas que Deus chamara a si". Essa última frase é plena de cinismo. A riqueza do livro reside nisso, os personagens não são bons ou maus, são ambíguos, têm bons e maus sentimentos, como todos nós, e zonas obscuras, desconhecidas e misteriosas. Os personagens estão plenos de fraquezas, incertezas acerca de si próprios, mau caráter. A narradora, por exemplo. Ela desfez o casamento do pai com Anne colocando a ex-amante no jogo, junto com ele. Anne vê os dois beijando-se e parte de casa, em fúria. Estão numa casa de praia, alugada. O acidente, porém, não é fortuito, está previsto páginas anteriores, pressentido. A estrutura é muito bem feita. Nada há, ali, de graça. Logo no início, diz Anne: «é a casa da Bela Adormecida!», ao ver a vila que fora alugada. Cécile, a narradora, é a Bela Adormecida despertada por Cyril, um rapaz com traços latinos que é seu primeiro amante. Desperta para o amor, e para o ódio. Seu amor duplamente traído. Talvez a trama urdida por Cécile seja inverossímil, mas talvez pudesse não ser: afinal seu pai era um homem leviano que, cedo ou tarde, trairia Anne, mesmo depois de casado. Anne, personagem por quem Cécile tem um misto de atração e ódio, a ponto de não sabermos se ela tinha ciúme dela ou dele, exerce um fascínio em Cécile. Anne é culta, inteligente, elegantíssima.
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Quando Sagan morreu, escrevi:
"QUANDO MORREU AOS 69 ANOS, SAGAN ESTAVA ARRUINADA. TEVE DE VENDER SUA MANSÃO NA NORMANDIA, ESTAVA DOENTE E VIVIA DA CARIDADE DE AMIGOS. AS DROGAS, O ALCOOLISMO E O IMPOSTO DE RENDA ACABARAM COM SUA FORTUNA. CHEGOU A SER CONDENADA A UM ANO DE PRISÃO POR ENGANAR O FISCO, AO QUE UM DE SEUS AMIGOS ESCREVEU: "ELA DEVE AO ESTADO, MAS A FRANÇA LHE DEVE MUITO MAIS". SEU ROMANCE "BOM DIA, TRISTEZA" FOI SUCESSO MUNDIAL. SÓ NOS USA VENDEU UM MILHÃO DE EXEMPLARES. ERA MULHER DE ESQUERDA, ATIVISTA, MAS A MAIORIA DE SEUS AMIGOS PODEROSOS QUE A PROTEGIAM JÁ TINHA MORRIDO: SARTRE, MITERRAND, ORSON WELLES, NOUREEV, TENNESSE WILLIAMS. FRANÇOISE SAGAN FOI "A ÚLTIMA EXISTENCIALISTA". ERA INTELIGENTE, SENSÍVEL E UMA EXTRAORDINÁRIA ESCRITORA, DONA DE UM BELO ESTILO FAMOSO, FLUIDO E TRANSPARENTE, QUE CRIOU UM ESPÉCIE DE ESCOLA, COM MUITOS IMITADORES. DIZIA: "O QUE FALTA À NOSSA ÉPOCA É
A GRATUIDADE, FAZER ALGO POR NADA". ESCRITORA MUITO FÉRTIL, FAMOSA DESDE 18 ANOS, QUANDO ESCREVEU "BOM DIA, TRISTEZA" EM SETE SEMANAS, CONTINUOU ESCREVENDO DURANTE TODA A VIDA SEUS QUASE 5O LIVROS, ENTRE ROMANCES E PEÇAS TEATRAIS, MAS, APESAR DE FAMOSA, SOFRIA DE UMA ESTRANHA SOLIDÃO INTERIOR. SEU TALENTO, ENTRETANTO, NUNCA FOI RECONHECIDO PELA CRÍTICA.
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Nessa nossa época de vitória universal da Direita, ela, ativista de esquerda, alcoólatra e toxicômana, então pobre (nasceu rica e ganhou muito dinheiro, em fevereiro de 2002 foi condenada a um ano de prisão, por fraudar o fisco em 830.469 euros. A pena ficou em suspenso, assim como a multa de 50.000 euros. Estava (ou não) envolvida no obscuro «caso Elf», quando lhe pediram que intercedesse junto ao presidente Mitterand para que este concedesse à empresa "Elf" os direitos de exploração do petróleo do Uzbekistão. A companhia diz que depositou enorme soma num banco suíço, em pagamento aos serviços prestados por Sagan - é esta a raiz do processo aberto contra ela, por evasão de impostos. Confiscaram-lhe a casa.
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Crítica, dizia: "Nada tranqüiliza tanto como uma máscara". Recentemente, declarou: "Tudo o que recebo de direitos autorais vai para o fisco. Não me deixam um euro para viver. Dependo da caridade de um amigo, e estou destinada a um hospício". Esta situação piorou depois de uma queda, quando fraturou o fêmur e teve de submeter-se a várias operações. Sagan confessou, durante uma entrevista televisada, com uma garrafa de whisky e um cigarro na boca, que sua saúde deteriorada e seus problemas econômicos a impediam de terminar seus dois últimos livros. Era mulher de esquerda, feminista, ativista. Seu fim lembra o de Foucault. A França a matou.
"A LEI DO PRÓPRIO, OU POR QUE NÃO VI DERRIDA NO BRASIL"
A morte de Derrida nesta sexta-feira dia 8 de outubro me levou a uma reflexão tipicamente «desconstrutivista»: vi como a estrutura institucional universitária se imobiliza num campo fechado, num campo minado, naquilo que Derrida chamava de «a lei do próprio» - ou seja, a universidade que o trouxe se apropriou do filósofo aqui no Brasil e só deixou aproximar-se dele quem ela quis.
Eu não consegui «ingresso» para vê-lo aqui. Apesar de ter dito que inclusive tenho trabalhos escritos sobre ele. O uso da expressão desse conceito, a «lei do próprio», está em suas próprias possibilidades de disseminação.
Quando Derrida usa o termo, ele explora os vários significados do francês "próprio": propriedade, proprietário, apropriação, expropriação, com todos seus sentidos relacionados de propriedade, pertencer, como também do valor de proximidade, por exemplo, proximidade da fala para a consciência, ou da consciência para seu objeto, ou de concepções de verdade como a aproximação de representação para seu objeto (ver nosso «Novo manual de teoria literária», Petrópolis, Vozes, cuja 3ª edição que está saindo por esses meses).
Para Derrida, a primeira tarefa da Desconstrução é expor a natureza problemática de todo discurso "centrado", ou seja, os que dependem de conceitos de verdade, presença, origem, ou seus equivalentes.
A Desconstrução busca habitar as margens dos sistemas tradicionais do pensamento, para pressionar seus limites e testar suas fundações, fazendo a interpretação ilimitada de um jogo semântico irrestrito, que já não se ancora em qualquer significado. Este jogo irrestrito não deveria ser levado a significar, mas deve ser um pensamento livre e subjetivo.
Derrida argumenta que a possibilidade de significação depende em geral de um irreduzível efeito de "disseminação", pois o vagar da significação é a condição insuperável da produção do significado.
"Cuidado com os abismos e as gargantas, mas cuidado também com as pontes (diz ele). "Cuidado com o que abre para o exterior e para o sem-fundo, mas cuidado também com o que, fechando-se em si mesmo, não cria senão um fantasma de cercado, e se coloca à mercê de qualquer interesse ou se torna perfeitamente inútil.
Cuidado com as finalidades, mas o que seria uma universidade sem finalidade?", diz em "O olho da universidade".
A desconstrução pode ser entendida em parte como um ceticismo anti-humanista poderoso, que considera todas as referências de verdade como "teológicas". Representa uma aproximação importante e até certo ponto pode ser considerada como um movimento de contestação e de dúvida radical de uma época de globalização.
A crítica de Derrida às construções metafísicas deve ser associada ao termo "logocentrismo", com que Derrida descreve a tradição da filosofia ocidental, de perpetuar uma oposição fundamental entre falar e escrever.
Esta tradição vê a fala como possuindo uma imediação vital, uma "presença": a presença da fala do orador, a presença de sua consciência.
Escrever rompe esta presença, pelo advento do sinal gráfico, ou marca escrita. Ali a voz é alienada e entra no reino da alteridade, ausência e morte.
Escrever é visto tradicionalmente como o exemplo da ausência, associado com a queda da ordem do signo, onde o sinal e o signo escrito em particular só é compreendido como "o significante do significante"; quer dizer, como somente uma representação secundária, de uma fala que é uma representação, mas que é também aproximação de um pensamento virtualmente presente para a consciência.
De acordo com Derrida, esta ligação inextricável entre presença e palavra falada é a base da fundação metafísica, e por conseguinte é a pedra mais teimosa a desalojar pela desconstrução, até mesmo nesses discursos que vigorosamente atacam a tradição metafísica, como os de Sigmund Freud, Karl Marx, Ferdinand Saussure, Edmund Husserl, Martin Heidegger e Friedrich Nietzsche.
Por isso mesmo é que eu queria ouvi-lo ao vivo. E vivo.