COLUNA DE THATY  MARCONDES 
Na área empresarial, trabalhou na implantação de projetos de administração, captação e aplicação de recursos, e ainda em redação e revisão de textos técnicos. Nascida em Jundiaí, reside atualmente em Ponta Grossa/PR.

1ª quinzena de setembro

CALÇADAS

Nas calçadas dormem os miseráveis, os incontáveis vitimados da pobreza em penúltimo grau – o último talvez lhes fosse mais bem vindo, por tratar-se da morte certa, corpo inerte em caixão barato, enterrado em vala comum .

Ao relento, cobrem a cabeça com a proteção improvisada tentando não sentir o cheiro pútrido de seus corpos mal alimentados, dos vestígios de seus excrementos pelas vestes, dos piolhos se alimentando de seus cérebros confusos. Em vão, tentam um sono gratuito para esquecer a fome, o aperto no estômago, o mau hálito dos dentes podres e da bebida barata furtada na encruzilhada dos que professam uma fé que não é sua.

Na manhã seguinte o susto, o medo, a notícia na TV da porta da loja onde não são bem vindos como espectadores, transeuntes da cidade que não os abriga, da sociedade que os ignora, do governo que os massacra em miséria total.

O cara que pediu um gole de pinga ontem foi morto, queimado vivo. E o próximo, quem será?

Num misto de esperança e medo de que ele seja o próximo, pede uma purinha no balcão do bar de última categoria, freqüentado apenas pelos restos humanos que vagueiam perdidos na madrugada imunda da cidade iluminada pelo néon. Logo alguém solidário se oferece: “Serve logo que o cabra ta sedento. Anda, dê a pinga que eu pago .” . Ele agradece e reflete: “Dinheiro pra pinga todo mundo arruma, mas um prato de comida é difícil”. Pega o copo que transborda, joga ao chão um gole pro santo. Que santo? Nem ele sabe! Sabe apenas que é costume, todo mundo faz assim. Vai que dá sorte! E essa noite, quem sabe, o santo lhe ajuda e lhe incendeia o corpo cansado da sina? Assim, queimado e limpo, espírito e corpo purificado – só cinzas – talvez lhe deixem entrar no lado rico do céu.

Mais uma dose – outro solidário paga.

Assim satisfeito, com a alma divagando e a mente embriagada sai devagar, cambaleando a tontura da fome. Tem pressa pra inaugurar nova calçada com o corpo dormente do álcool, a caixa de papelão pra espantar a garoa, o sorriso nos lábios pra atrair a morte.

Nem corre, não dá tempo. Mas sente a dor – preço da purificação e do bilhete premiado para a entrada no paraíso.

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