Lição de um catador de latinhas

    Comecei a perceber a existência de catadores de lixo no meu prédio, num domingo em que estava olhando da sacada de meu apartamento, o meu carro lá embaixo.Eu moro no quinto andar de um edifício com doze, e naquele dia eu tinha deixado o carro na mão de meu filho Júnior, pois ele tinha acabado de tirar sua carteira de motorista e, apesar da minha mínima confiança em suas habilidades na estrada, era mais do que justo emprestar-lhe o carro.
    Estava observando-o estacionar pra conferir se o dinheiro gasto no exame da Auto-escola tinha valido a pena, quando pela primeira vez notei os catadores, amassando algumas latinhas: eram em quatro, um homem, uma mulher e duas crianças. Eles abriam os sacos de lixo, e sem nenhuma proteção, colocavam as mãos cuidadosamente, procurando as latas, jogando instantaneamente no chão todas as que achavam, e as amassando com os pés. As crianças, que também mexiam no lixo, pegavam as latas amassadas e as colocavam em um saco separado. O trabalho era coordenado, parecendo uma sincronia de no mínimo de anos de prática.
    Por alguns minutos percebi que o menino, que parecia ter seus seis anos, achou alguma coisa, que de onde eu estava parecia ser um cd. Ele observou o objeto, mostrou ao pai que fez um sinal negativo com a cabeça. Estava claro que mandara o filho deixar o cd ali, provavelmente porque não teria nenhuma utilidade para eles aquela peça. Era óbvio e triste. O menino então colocou o cd de volta no saco de lixo aberto e Júnior entrou em  casa, reclamando com a irmã sobre um suposto desaparecimento de um de seus  cds, o que ocasionou mais uma daquelas discussões intermináveis entre os  dois irmãos. Fui tentar resolver e quando voltei a família já não estava mais lá, somente os sacos fechados como se não tivessem sido sequer mexidos.
    Aquela cena me deixou muito desconfortável, me fez pensar durante todo o dia como seria a vida daquelas pessoas, e, sem nenhuma intenção de fazer algum trocadilho sarcástico, aquele episódio me fez sentir-me um lixo.
    Confesso que durante toda a semana sempre que encontrava algum "pepino" no escritório para resolver, logo me lembrava daquelas quatro pessoas, e percebia que os meus problemas eram mínimos diante da vida delas, feitas de catar lixo, por necessidade de sobrevivência.
    Chegou o domingo, e quase na hora que eu imaginava estarem ali novamente os catadores de lixo, eu desci. Nunca estive tão perto da miséria — talvez tenha vivido alguma experiência semelhante no trânsito, quando algum menino vinha pedir algum trocado ou vender alguma coisa; mas quem nunca passou fome na vida não costuma prestar atenção nessas coisas e catadores, vendedores de semáforo ou qualquer outro pedinte acaba fazendo parte do cotidiano da cidade.
    Perplexa com a coragem dessas pessoas, entreguei ao homem a minha contribuição: um saco cheio até a boca de latinhas devidamente  amassadas, que eu mesma recolhi durante toda a semana, em casa e também no  escritório — era uma forma de demonstrar minha preocupação, meu interesse em ajudar.
    O homem agradeceu sorrindo, ainda olhando fixamente para a quantidade de latas dentro de um saco só. E antes mesmo que eu lhe dissesse que estava disposta a repetir o mesmo ato muitos e muitos domingos, ouvi dele uma das maiores lições de vida.
    — "Muito obrigado, viu moça? Que Deus continue dando a você e a sua família muito boa condição para que vocês possam beber muitas dessas".
    Não era só coragem daquelas pessoas. Era o mais puro exemplo de dignidade já visto por mim ao longo de meus quase quarenta e cinco anos vividos.

Simone Ribeiro

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