Inesperadamente,
ele se ajoelhou em plena praça, em pleno dia, arrebatado.
— Aquele cardume ficará magnífico em branco e preto.
Surpreendi-me com a atitude quase mística, pois, engolfada em
preocupações terrenas, meu enfoque era puramente terrestre.
E o que via eram estátuas, pombas, as domésticas pombas do
Judiciário, empoleiradas no Palácio, tomando sol, todas soberanas.
Imitando-o volvi os olhos para o céu e me extasiei com a procissão
de miúdas nuvens oblongas. E como ele me falasse de peixes nadando
no espaço, lembrei-me do estranho arquivo de Ford: o dos acontecimentos
impossíveis. Lá estava, devidamente anotada uma chuva de
peixes e com ela a sugestão de um mundinho irmão gêmeo
do nosso despencando-se pelo espaço e precipitando seus mares, oceanos
e rios. Mas naquele momento, os peixes que víamos eram realidade
metafórica, aliás, tão importante quanto a outra.
O céu ostentava a plácida redondez de um aquário onde
lerdos cardumes nadassem em câmera lenta.
Em seguida soltou seu desabafo: — Pode haver coisa mais insípida
no mundo do que um céu azul?
E a indagação que à primeira vista poderia parecer
desses anticonvencionalismos propositadamente sensacionalistas, era coerente
e autêntica na maneira de ver de um fotógrafo. As nuvens eram
o elemento plástico por excelência. A elas cabia toda a dramaticidade
dos céus diurnos. Assim como um ficcionista não se comoveria
com uma história de amor perfeita, exigindo a tensão e o
conflito, ele pedia nuvens. Aquelas peripécias de algodão
é que faziam o céu de hoje diferente do de ontem, o deste
momento, incomparável com o de inda agora e o de daqui a pouco.
Pois não é que os peixes se haviam metamorfoseado num rebanho
de carneiros? E os carneiros pastavam entre montanhas que ainda há
pouco eram taludes?
Longe, na direção da Torre, a massa parda e pesada, imponente
e cinzenta como uma legião de elefantes exilados, vinha avançando
em conquista da cidade, prometendo um denso reposteiro d'água. As
nuvens, eram também o elemento profético da atmosfera. Àquela
hora, pensava eu, muitos guarda-chuvas deveriam estar sendo convocados.
Onde estávamos, porém, o sol ainda dourava o alvo lombo dos
carneiros e o costado das montanhas. Foi quando descobri um dromedário
e testemunhei o instante em que ele virou camelo, em que nítida,
desenhou-se uma segunda corcova. E tive uma idéia de pura reminiscência
infantil. Tirei da cabeça o lenço branco com que defendia
meus cabelos do açoite do vento vespertino e ofereci ao fotógrafo,
dizendo:
— Vamos, aproveite o cenário. Coloque o lenço a beduíno
e cavalgue aquele camelo. Agora quem é fotógrafo, sou eu!
(Estava revivendo o dia em que voara, sabe lá há quantos
séculos, na janelinha do retrato de um fantástico zepelim
de papelão).
A pena é que ao conseguir manobrar a máquina, o camelo havia
fugido não sei por que trilha do infinito, a claridade arrefecera
e a chuva caminhava em nossa direção.
Astrid Cabral