Foi tão estranho. De repente, entrei na sala e vi a mesma cena
que, há tanto tempo, no meu tempo de menina, via. O controle
remoto quase caindo da mão, o corpo em concha, os olhos candidamente
fechados. Nenhuma urgência.
Meu pai dormindo num domingo à tarde. Imagens dançaram
em carrossel, tudo se transformou numa linda história que me
conduz à vida.
É da urgência que tenho medo. Essa loucura desatinada que
sobe pelo corpo, pelas têmporas, que, com grossos dedos, nos
despe a alma e arranca lá do fundo do peito o sangue vermelho,
jorrando-o sobre a delicadeza.
Eu era criança e fazia barulho de propósito nas tardes de domingo. Queria meu pai acordado, pegando no colo, correndo comigo pelo quintal. Eu tinha urgência de meu pai.
Mas, hoje, foi diferente. Tão plácido ele, ali, que mal tive coragem de olhá-lo. Chovi por dentro, como se a urgência, de repente, invertesse o destino e atinasse o coração. De sangue tingi minha alma.
Não desses sangues de guerra. Vermelho de vida, de bem querer,
de enxergar as coisas e suas essências. Meu pai dormia e
balançava o controle, reflexo.
Pensei em gritar de repente, correr até ele e dar um abraço
desses que ninguém sabe o motivo de estar ganhando. Se é
que há
que ter motivo para um abraço. Mas deixei-o dormir, sem urgência
nenhuma.
Eu, antes, era a menina e podia tudo. Agora, sou a mulher e preciso atinar para as minhas próprias dores.
E foi tão lindo reconhecê-lo naquela falta de urgência.
Érica Antunes