De certo, o passado afeta a todos. Poucos são os que podem dizer-se imunes aos assédios da nostalgia, ao que há muito não alcança os olhos. Raro mesmo é o que não deixa rastros.
Nem bem começava o dia, lá ia o velhote para a banca de revista. O itinerário era sempre o mesmo, a busca pelo jornal quentinho, mal saído do forno da gráfica, era como um vício impiedoso que tirava aquela alma recurvada de casa, fizesse chuva ou sol.
Seu Ivan era parte da paisagem corriqueira dos longos dias de minha infância, e dos quais eu era observador atento e fiel. Do alto relativo de meus oito anos, confortavelmente instalado – com a ajuda de uma almofada macia – no parapeito da ampla janela de casa, eu analisava o leve cotidiano da estreita e acolhedora Vila Farah.
Seu Ivan era uma figura estranha e um tanto enigmática, mesmo para minha fértil imaginação de menino. Um velhinho magro e ligeiro, de roupas sóbrias e chapéu de fibra gasto na cabeça, a idade indefinida apenas um pouco menos fantástica do que supúnhamos eu e meus pontuais comparsas na peteca e no fura-fura, ao avistá-lo pelas ruas, apressado, faminto das últimas notícias.
Nunca fui muito afeito de falar com quem nada me pergunta. Conselho sábio de minha avó: em boca fechada não entra mosca, mosquito ou qualquer outro inseto de gosto desagradável. Pra ser exato, sempre fui um tanto tímido, e na infância vivi os momentos áureos de minha agora combatida insociabilidade. De fato, fui de uma timidez tão absurda que chegava a corar ao perceberem o quanto era tímido.
Nunca conversei com seu Ivan, nem sequer vi seu rosto de perto, sempre meio encoberto pelo inseparável chapéu. Devo tê-lo cumprimentado não mais que umas duas vezes, de longe, sem encará-lo um só momento, e apenas porque minha mãe obrigou-me, entre resmungos sobre educação e respeito para com os mais velhos. Para acentuar sua estranheza, diziam os garotos mais velhos da vila que seu Ivan tinha um jeito de falar com as pessoas olhando no olho um tanto de banda, com um tenebroso sorriso torto lançado a todos os que, como eu, mediam menos de um metro e meio de altura. Mas os mais altos que os garotos mais velhos até que o achavam bem simpático.
Ainda hoje, lembro daquela manhã com muita clareza. O vento chacoalhava as folhas do jornal, como fazia com as do jambeiro da vizinha dona Cota, e o papel amarelado, manchado de letrinhas negras, encobria o rosto de seu Ivan. O caminhão dos sorvetes Kibom primeiro me encheu de uma infantil e saborosa alegria, inundando d’água a boca, mas só para logo depois me transbordar de uma impressão estranha, nunca antes sentida. O jornal esvoaçou por todos os lados da rua, pleno de liberdade, suas folhas soltas flutuavam num sem fim..., pareciam não ter como ou onde cair.
Tempos depois, descobri que seu Ivan, na realidade, não se tratava de um leitor febril, de um cidadão informado sobre os vais e vens do mundo. Não. Com uma alegria estranha, que travestia-se em tristeza de momento a momento, a bel-prazer, fiquei sabendo que o velhinho tratava-se, sim, de um avô dos mais amorosos, que sofria de saudades da neta jornalista, transferida havia algum tempo para um vespertino de São Paulo, e que encontrara a forma de amenizar o vazio que sentia através das folhas amareladas do diário paulistano encomendado, nas quais devorava com um profundo orgulho as parcas linhas assinadas pela garota.
O dia seguinte ao atropelamento de seu Ivan marcou minha vida como o primeiro em que comprei um jornal, com dinheiro roubado da caixinha de jóias de minha mãe (quando esta descobriu o pequeno delito, a confusão só não foi maior do que a minha própria ao tentar abrir e segurar aquelas folhas enormes, quase do mesmo tamanho de meu corpo inteiro). E sempre que me lembro daquele velhote magro, ágil, de chapéu de fibra amarelo-desbotado, algo que vem de dentro mansamente me diz que, de um jeito meio enviesado como o sorriso que lançava ao interlocutor, seu Ivan foi um pouco responsável por minha incursão na fugaz e atropelada rotina do jornalismo.
A. Ramôa