Pentalouco 

A loucura  a que o pentacampeonato levou  os brasileiros parece não ter parâmetro em nenhum momento de nossa história nem tampouco na história de  outros povos. Valho-me de uma crônica de viagem para tentar explicar a euforia da qual também eu fui tomado com a vitória da seleção de futebol em gramados do Oriente, assegurando o quinto título mundial ao Brasil.
A crônica que vou transcrever do livro “Um franco nos trópicos” de Pierre Dessault, tão obscuro quanto o livro e a editora de Toulon, havia quase quinze anos, jazia entre os livros de minha biblioteca desde que o adquiri de um sebo em uma de minhas tantas viagens, e expressa a estupefação de um francês (nenhuma coincidência com 1998 — ele foi publicado em 1972) com o nosso fanatismo pelo futebol. Está carregada das fortes cores de um pastiche que procura imitar a façanha dos compatriotas Debret e Rugendas e do alemão Humboldt. Dessault começa assim: “Nunca vi tanto fanatismo em um povo. Talvez um paralelo, para melhor entendimento — mas ainda acho pouco —, possa ser feito com a paixão dos espartanos pela guerra e dos americanos por hambúrguer e coca cola.
O Brasil vivia o clima de mais uma Copa quando por lá estive, as ruas coloriam-se de verde-amarelo, as pessoas nas ruas não comentavam outro assunto e deixavam-nas vazias em dias de jogo. Falar mal da seleção era correr risco de linchamento —  ainda maior sendo estrangeiro. O fanatismo criou no povo hábitos peculiares: ele consegue não trabalhar em dias de jogo e feriar após as vitórias; aliás, após as vitórias as ruas e praças entupiam-se de um povo alegre, festivo, cheio de mesuras e concessões, ansioso apenas de ver a supremacia de seu futebol assinalada. Festejavam loucamente como Napoleão festejava seus triunfos militares; mas os feitos do Imperador eram mais significativos.
Entediado com aquelas cenas que não me entusiasmavam (prefiro os marciais desfiles pelo Dia da Vitória sob o Arco do Triunfo), resolvi ir a uma igreja para fugir a tanta atribulação.
Era um dia nervoso. Senti isso na recepção do hotel no Rio: os recepcionistas pareciam não entender o que os hóspedes — quase todos estrangeiros — diziam. E não era pela barreira intransponível do idioma, ouviam atentamente o  que dizia o rádio. O Brasil disputaria dali a instantes mais uma final de Copa. A aflição e a expectativa antecediam  no semblante dos brasileiros a alegria consagradora das vitórias. À saída do hotel demorei a encontrar um táxi, e quando o encontrei logo soube por que: o motorista era português. Os últimos carros dobravam céleres as esquinas. Ninguém mais era visto nas ruas. A cidade estava deserta. As bandeiras brincavam com o vento nas marquises dos prédios e janelas dos apartamentos. Ainda antes de conseguir um táxi os fogos de artifício estouraram várias vezes. Era bom sinal para os brasileiros: a seleção estava vencendo.
Consegui um carro. Por alguns minutos ouvi apenas o chiado dos pneus do táxi sobre o asfalto e o cantarolar monótono de um fado com o qual o motorista tentava quebrar o silêncio. Desci na igreja da Candelária. A beleza da igreja não me impressionou tanto quanto vê-la quase vazia na hora da missa. Umas poucas velhinhas, duas ou três jovens senhoras com crianças e três homens compunham a assistência quando cheguei. Ninguém entrou depois. O padre rezava a missa mas — absurdo! — tinha sobre o mantel um rádio ligado no jogo. O nervosismo era grande em todos: o padre italiano de vasta calva suava abundante e tropeçava no péssimo português seguidamente. Os fiéis pareciam não ligar ao que ele dizia: estava claro que ouviam a frenética  voz do locutor. E o locutor invadia a nave com sua voz mais potente que todas as trombetas de Jericó: ‘Torcida brasileira, o jogo está próximo do fim...espetacular jogada de Clodoaldo, ele lança Pelé pelo miolo, o rei livra-se de um marcador e rola a bola em diagonal para a penetração de Carlos Alberto....o capitão dispara uma bomba: é gooooo...’
O ato seguinte foi inédito para mim. O padre não deixou o locutor terminar  o grito de gol e meteu a mão no rádio com muita raiva, derrubando-o de sobre o altar. Ao mesmo tempo, como impulsionados por uma única e potente mola, as velhinhas, as senhoras com as crianças e os três velhos levantaram-se e  correram para a rua. Gritavam em uníssono pela nave afora: é tri, é tri, é tri.
Os fogos de artifício espocaram pela cidade como uma grande barragem de fogo de artilharia. O Brasil selava a vitória contra a Itália no México. Eu também deixei a igreja depois de presenciar o padre seguir silencioso e cabisbaixo para a sacristia. Não havia mais razão para continuar a missa. Sob o altar o rádio zoava ininteligível. Fui direto para o aeroporto. Era demais para mim.”
E essa foi apenas a comemoração do tricampeonato, imagine se esse francês presenciasse a nossa comemoração do penta. Pentalouqueceria.

jjLeandro

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