Quem nunca disse, pelo menos uma vez
na vida, "nunca mais vou beber"? Saulo repete a frase enfatizando cada
sílaba, sem conseguir se levantar da cama. Sente que a qualquer
momento a cabeça vai estourar de tanta dor. O pano molhado sobre
a testa apenas refresca um pouco. O quarto escuro com ar-condicionado é
um oásis nestas manhãs de sol forte e calor.
Estica a mão para pegar o chá quente que sua mulher
acabara de fazer. O corpo todo dói. Lentamente se inclina para beber
o líquido. Verifica que está cheio de hematomas: no braço,
nas costelas, nas pernas e no pé. O olho esquerdo está tão
inchado que nem consegue abrir.
Como chegou a esta situação?
Será que foi atropelado? Tenta se lembrar, enquanto sente o gosto
amargo do chá preto. Teve que inventar uma estória para a
mulher. Disse que foi assaltado depois que saiu de um barzinho, em que
comemorava a vitória da seleção brasileira. "Foi um
seqüestro relâmpago. Levaram minha carteira, meu relógio,
cartões de crédito, cheques, meu celular, todos os meus documentos,
tudo, e ainda me deram uma surra. Não sei como ainda estou vivo",
falou entre lágrimas.
Nem sequer sabe se é mesmo mentira
essa estória. Não se lembra de quase nada da noite anterior.
A única certeza que tem é que foi ao Gilberto Salomão,
de táxi, comemorar com amigos a conquista do penta. "Conquista do
penta! Conquista de uma ressaca fudida, isso sim. Ai, minha cabeça!",
murmura. Saulo também se lembra que encontrou com os amigos do trabalho
no boteco e encheu a cara de cerveja. Litros e litros. Foi o maior porre
da sua vida. Quando recobrou a consciência, estava andando ao longo
de uma auto-estrada, com a camisa verde-amarela da seleção
suja de vômito, o corpo quebrado, morrendo de frio e sem grana. Recorda-se
que a noite estava um breu, sem lua e muito menos iluminação
pública. Depois de muito andar, já desesperado e tremendo
da cabeça aos pés, chegou a uma parada de ônibus. Havia
somente um vira-lata sonolento. Os poucos ônibus que passavam não
paravam, seguiam direto para a rodoviária. Não se arriscou
a pedir carona naquele lugar escuro. E quem iria parar para aquele trapo
humano? Voltou a andar, sem saber aonde estava indo, completamente perdido
naquele fim de mundo. Foi quando um carro freou ao seu lado e buzinou.
Teve vontade de sair correndo, em direção ao matagal. Olhou
assustado para o lado: era a sua mulher. Entrou mais que depressa no carro
e chorou feito criança. Foi logo inventando a estória do
assalto, para se desculpar, sem nem perguntar como ela tinha aparecido
ali, de repente.
Lúcia não se comoveu com
as lágrimas e falou que uma mulher havia ligado, dizendo que ele
estava em Planaltina. "Disse apenas isso e bateu o telefone. Quem é
essa mulher", quis saber. Não tinha a menor idéia, mas agora
que tinha começado a mentira, teria que ir até o fim. Inventou
que havia uma garota "no bando", era a namorada de um dos caras, que parecia
ser o líder. "Eram quatro adolescentes, três caras e a menina.
Estavam drogados e armados com facas", disse.
Ela acreditou ou fingiu ter acreditado
e deu por encerrada a estória, depois que suspendeu os cartões
do banco, de crédito, os talões de cheque e cancelou o celular.
Lúcia se orgulha de ser uma pessoa prática. "O prejuízo
não foi tão grande. Agora vai tomar um banho, você
está imundo. Vou tentar conseguir um atestado médico com
o meu pai".
"Pelo menos não vou trabalhar
hoje. Estou cada vez mais de saco cheio daquele escritório", diz
Saulo, já se sentindo um pouco melhor. Vê a calça jeans
ao lado da cama. É a prova de que o pesadelo da noite anterior aconteceu.
Está suja de barro. Júlia com certeza não viu a calça.
Ela tem mania de limpeza e não suporta bagunça no quarto.
Saulo mexe nos bolsos em busca de qualquer vestígio que o fizesse
relembrar o que diabos estava fazendo em Planaltina ontem. Susto. No fundo
do bolso encontra um papel todo amassado. Abre com as mãos trêmulas
aquele que parece ser um bilhete vindo diretamente do inferno. Lê:
"Adorei o beijo. Desculpe o Anderson, ele é muito ciumento, mas
é uma boa pessoa. Ele disse que pegou emprestada a carteira, mas
que um dia vai devolver o dinheiro. Estou com o teu celular. Me liga. Beijo.
Xuxuca".
Saulo relê aquelas palavras escritas
com letras grandes, tortas, feitas com caneta azul sobre o guardanapo.
Notou que "pessoa" estava escrita com "ç" e "carteira", "dinheiro"
e "beijo" não tinham o "i". Sente a dor de cabeça aumentar
de forma insuportável. Está tonto, de tanta dor. Encolhe-se
na cama, cobrindo-se o máximo que pode, como se quisesse se esconder
do mundo. Olha novamente o guardanapo. O que faria com aquilo? "Penta é
o cacete, o cacete!"
Ricardo Borges