HOJE É O DIA DO ESCRITOR

         O jovem discípulo aprisionou um  pequeno pássaro entre as mãos,  colocou-se atrás do seu mestre e falou-lhe:  “Mestre, tenho um pássaro nas mãos. O  senhor, que sabe todas as respostas, diga-me:  Ele está vivo ou morto?”

         Se o mestre respondesse: “Está vivo”, o  discípulo esmagaria o pássaro e o exibiria  morto. Se a resposta fosse: “Está morto”, o  discípulo libertaria o pássaro, que voaria  frente ao mestre agora desmoralizado.

         O que falar? O que dizer? O que  responder?

         Permitam-me que eu os cumprimente a  todos aqui com a tradição, a simplicidade  e a educação de duas palavras: Senhoras;  Senhores.

         O que podemos falar, e o que devemos  dizer, em um discurso? Que palavras  devemos usar, que sentidos devemos  empregar, que emoções devemos  expressar, que reações queremos  provocar?

         Ah!, esse novo jogo verbal, essa nova  esfinge vocabular também nos observa e  repete: “Decifrem-me, ou lhes devoro”.

         Falar sobre o que falar é reabrir a  discussão   — tão antiga, tão presente —  entre o ser  e  o  ter.  Reflitam comigo:  Como escritores, queremos ter o poder da  palavra ou queremos ser a palavra do  poder?

         O mundo ainda não acabou por causa da  Arte, por causa dos artistas. Há artistas de  todos os naipes: gente que musica e  compõe, que esculpe e cinzela, que calcula  e escreve, gente que pinta e borda. Gente,  boas gentes. E há gente que fala, que canta  e encanta, que clama e reclama, gente que  declama.

         Nisso tudo, a palavra. A palavra base,  baldrame, bastião. A palavra resistência,  permanência   --   e, disse Guimarães Rosa,  “resistir é permanecer”. Senão, vejamos: O
 que valeu mais para Portugal: ter  conquistado, com seus navegadores,  algumas terras há muito tempo retomadas  ou devolvidas, ou conquistar diária e  eternamente o mundo inteiro com “Os  Lusíadas” de Camões, com a poesia de  Fernando Pessoa?

         De que valeram os enormes, portentosos,  mas ao final destroçados, derrotados  tanques de guerra da Alemanha? Porém,  as obras de seus pensadores e  compositores permanecem inteiras e, elas  sim, continuam conquistando todo mundo  no mundo todo.

         No meu Estado  — que, por sua  importância econômica e cultural, em  meados do século 19, dividia o território  brasileiro em dois: Estado do Maranhão e  Estado do Brasil --,  no meu Estado havia  gigantescas fábricas de tecidos, que teciam  o nome e fama nacionais. Hoje, que é  daquelas fábricas? Sumiram.  De-sa-pa-re-ce-ram. Tornaram-se pó (ou  tornaram ao pó), como prova da  efemeridade, da transitoriedade, da  impermanência a que estão submetidas, ab initio, as coisas materiais.

         Mas é igualmente da terra das palmeiras,  onde cantam os sábios e os sabiás, que  vem a obra de Gonçalves Dias, Coelho  Netto, Humberto de Campos, Ferreira  Gullar, Josué Montello, sem esquecer um  dos maiores   — e menos divulgados —  gênios matemáticos que o mundo já teve:  Gomes de Sousa, o jovem “Sousinha”, que  também era médico, literato e poliglota, e  que deixou perplexa a Europa com seus  conhecimentos sobre tudo, mas,  sobretudo, sobre Matemática, Física e  Astronomia, antes de morrer com pouco  mais de trinta anos.

         Senhores: Da bíblica Jerusalém, da Grécia  do século oito não restou pedra sobre  pedra, mas a palavra de Cristo e os versos  de Homero estão aí, a encantar o mundo,  a edificar o homem.

         Que lição isso traz? A lição, tão bem dada  e tão mal recebida ou mal aprendida, o  exemplo tão bem demonstrado e muito  pouco seguido, é a lição de que aquilo que  nos parece ser mais frágil, mais débil,  mais fraco, é o que resiste, é o que  permanece. A palavra, passada oralmente,  escrita em papel, às vezes moldada no  barro ou emoldurada no ferro, a palavra é  o edifício que não rui, a construção que  não desaba, o prédio que não tomba, a  casa que não cai.

         No princípio, e depois do fim, será sempre o Verbo.

         Senhores, estamos vivendo em um mundo  de virtudes rarefeitas. Neste momento  empregados estão contrafeitos, clientes  são desfeitos, cidadãos mostram-se  insatisfeitos e patrões, administradores e  governantes podem levar tiro nos peitos  porque não estão sendo humildes e  honestos no que tinham a falar, no que  deviam dizer; porque, mesmo quando lhes  é exigido serem duros no falar, não devem  perder a ternura jamais. E comunicar
 também sugere isso. Afinal, ternura não é  frescura, delicadeza não é patente de  dama inglesa. Não há como confundir,  não há porque confundir educação com  bajulação, boas maneiras com  maneirismos. Servir não é ser vil, ou  servil. Comunicação é ação única, ação  comum, como um, como única ação.

         E por que assuntos como este, discussões  como esta, sobre palavra e virtudes, por  que isso tudo parece ser tão  incompreensível, inadmissível, tão demodè,  às vezes tão estranho, hoje?

         O que foi que aconteceu? Houve a  banalização da fala? A vulgarização da  palavra? A dessensibilização dos  sentidos? A dessacralização dos  sentimentos?

         É o mau uso da Língua, a incorreção da  linguagem, a palavra de duplo sentido ou  a vida sem nem um significado?

         É a precariedade ética, a prevenção cética,  o primarismo estético, o pragmatismo  técnico?

         É a miopia política, a ausência de crítica, a  repetição cíclica, a deseducação típica?

         É a inafeição cultural, a inaptidão  intelectual, a indisposição literal, a  desinformação atual, a decomposição  moral e coisa e tal, o que é, Senhoras e  Senhores? É a falta da virtude rara, da  vergonha na cara?

         Desculpem-me   — peço-lhes —   se, em vez  de um fraseado bonito e soluções  confortantes, trago-lhes eu aqui um  leriado, um palavreado feio e dúvidas  cortantes, constantes. Mas até nisto há de  se entrever algum mérito, porque o  homem também cresce quando duvida.

         Dúvidas, pois, à mão cheia... e deixa o  povo pensar. Dúvidas, pois, à mão cheia,  para todos vocês, fiéis e únicos  depositários de suas próprias respostas.

         Trago-lhes a dúvida não da palavra, mas  a do que fazer com ela. A mesma dúvida que pensou gerar o jovem discípulo  (lembram-se) ao aprisionar um pequeno  pássaro entre as mãos e testar seu próprio  mestre: “O pássaro está vivo ou está morto,  mestre?”

         “Filho  — respondeu o mestre —, o futuro do  pássaro está em tuas mãos. Como o queiras.”

         Senhoras e Senhores, usei da palavra para  conceder-lhes, para conceder-nos o
 benefício da dúvida. Pois a resposta, o  futuro   -- vivo, alegre, de altos vôos aos  céus, ou morto, cinzento, ao rés do chão e  no pó da terra --, esse futuro, e o que fazer  da palavra, dependerá dos Senhores,  dependerá de nós. U-ni-ca-men-te. Como  assim o decidirmos.

         Façam o jogo, senhoras e senhores.

         A sorte novamente está lançada.

Edmilson Sanches

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