Quatro formaturas, dois velórios e cinco festas julinas

            Um jato de luz solar diagoniza pela janela mais próxima do arco-cruzeiro da São Francisco de Assis de Ouro Preto – M.G.,  por muitos considerada a obra-prima do arquiteto luso- africano Antonio Francisco Lisboa. Eu me contento em olhar, cheirar e imaginar missas, consagrações, enterros, casamentos, batismos e crismas sob as bênçãos da Regina Coeli pintada no teto daquela igreja por Manoel da Costa Atayde. Andorinhas esvoaçam entre as torres e os seus sinos. O cemitério da Irmandade jaz ao lado. Pompa e misericórdia, solenidade e prodigalidade, beleza patética e assombro, um espanto barroco com capa de veludo azul marinho e diamantes estrelares. Sublime!... Envolto em nuvem de incenso, em plena consagração do Santíssimo, envergando o suntuoso manto de Arthur Bispo do Rosário, escoltado por duas fileiras de coroinhas, passa o Arcebispo da Sé de Mariana, a mais antiga das Minas Gerais. Imponente como um  comandante militar romano, dirige-se ao altar-mor  onde, depois, lavará  os pés dos meninos engraxates da turística praça Tiradentes. Glauco Mattoso o invejará, quererá estar no lugar de Dom Oscar. Impossível!... Estandartes apocalípticos e esquizofrênicos são empunhados pelas duas fileiras de coroinhas em volta do altar. Uma procissão imóvel se corporifica dentro daquela famosa igreja, como uma centopéia paralítica após sucessivos martírios, como uma marcha fúnebre ou militar congelada, um espantoso dragão de mil pernas e dois mil braços imobilizado por aquela luz solar fugidia. Uma fila de cachorrinhas magras, vira-latas, nas cores branca e preta, com véus e panos brancos de beatas e de lavadeiras de margens de rios, posta-se em torno dos retábulos de Nossa Senhora do Carmo e de Nossa Senhora das Dores. Todas as cadelinhas magras com fraldelins e saiotes listrados à moda moura e  empézinhas!... Só vendo!... Fiquei encantado.
            Muito contrito eu lia um recorte do primeiro capítulo do livro Quase trinta  de John Reed (1887 / 1920), colocado no meio do meu missal. Este fragmento dizia, em tom confidencial, o seguinte:
            “As prostitutas eram minhas amigas, bem como os marinheiros bêbados de navios recém-chegados do fim do mundo e os estivadores espanhóis da West Street. Descobri restaurantes obscuros maravilhosos, que serviam pratos de todo o mundo. Sabia como conseguir drogas, onde contratar um homem  para matar um inimigo; o que fazer para entrar em locais de jogos e salões de baile secretos. Naquela época, li uma boa quantidade  de literatura radical, participei de reuniões de todos os tipos, conheci socialistas, anarquistas, defensores do imposto único, líderes operários e, além disso, todos os utópicos minuciosos e teóricos insignificantes que se agarram às saias da mudança.”
            Quem ali no meu santo livro teria colocado tamanho e incongruente disparate literário? Tão espantoso trecho subversivo?!... Nem imagino quem o tenha feito, creia.

II

            A torre da igreja, assim como o para-raio que ultrapassava a sua cruz, eram tão altos que, ao olhar para cima para tentar ter uma idéia da distância que separava aqueles píncaros do chão deste mundo, eu me estonteava. Era cá embaixo que um papeleiro tentava atropelar uma gorda senhora vestida de preto e com uma rosca doce em forma de coque na altura da sua nuca. Puxando as tábuas que o atavam à carroceria, curvava-se como um escravo embrutecido e humilhado e não parava de proferir desaforos e expressões grosseiras contra a aflita e branca senhora, que estava quase a sofrer um ataque cardíaco. Não tinha um burro para puxar a sua carroça. Assim, se transformava velozmente num indignado animal de carroça. A senhora obesa suava frio e se via acuada como uma porca flácida a correr com dificuldade pelo chiqueiro para não ser capturada pelo seu provável sacrificador, desorientada diante da possibilidade de ser apunhalada, assada e desbarrigada. Em pleno desespero, ela conseguiu subir na carroça e assumir o seu controle chicoteando o embrutecido carroceiro com múltiplos terços e rosários que colecionava em sua negra bolsa de couro. Foi a sua salvação. Trêmula, desembarcou da carroça e, correndo para o interior da basílica de Nossa Senhora de Monteserrat, postou-se aos pés do altar da Virgem do Pillar de Zaragoza. Invocava a proteção  de todas as Virgens, em especial a de Guadalupe. Mas, no mais alto patamar do retábulo da Rainha dos Céus, encontrava-se, numa penumbra dourada e magestática, uma negra escrava com uma linda capa  toda bordada com volutas de fios de ouro e no seu ventre já palpitando o feto do Salvador, ciente da premência do seu nascimento redentor.
            Rezou cinco rosários e, aliviada pelo estado de graça, subiu a ladeira do monastério de Santo Domingo onde buscou a casa da sua comadre Veridiana, onde comeu com os anjos um pudim feito com muitos ovos e conhecido como “caçarola”. Estava no céu a nossa gorda e valente espanhola, nascida e criada em la calle Hortaleza, no bairro de Chuenca, no centro histórico de Madrid.
            Os céus de Madrid são mesmo mais parecidos com os de Belo Horizonte (cor de cobre com manchas cinzentas e negras) do que com os de Toledo, a ex-capital visigótica da Hispania. Nestes céus de Madrid e de Monteserrat Caballero, aquela gorda senhora flácida e alva volatizou-se, diluiu-se pelo Universo um dia surgido de um “big-bang” e que hoje se engalfinha num desesperante “bang-bang” no qual só se salvará quem puder. Fora Bush! Viva o Protocolo de Kioto!...
            “Como o corpo e a mente são integrados, para mim, a história e a arte devem estar integradas. Sou um artista tradicional. Não nego a tradição, a história, a história da arte. Não há diferenças entre homens e mulheres. Observe as masturbações das cadelas. Movimentam seus quadris como machos no cio. Acho que ainda não saímos da Idade Média.... Foi graças ao meu pai, um especialista em jardins, que aprendi a observar as pinturas como um jardineiro observa as flores. Ninguém deixará meu corpo morrer. Eu sou sangue. E o sangue se derrama por gerações, indivíduos, séculos... Ninguém isolará ou santificará meu corpo. Eu sou sangue e fertilizarei terras e pedras e delas nascerão outros como a mim. Ninguém carregará meu corpo enquanto corpo. Ninguém deixará sangrar meu corpo por que eu sou sangue. A Idade Média e o Barroco são inspiradores, apesar de ainda os desconhecermos. Estamos em 2001 depois de Jesus Cristo e vivemos ainda na Idade Média e ainda sob olhares inquisitoriais (leia 1984 de George Orwell).

José Luiz Dutra de Toledo e Jan Favre (*)

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(*) Jan Fabre é artista belga autor da peça teatral Je suis sang.

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