Mocidade Independente
Na favela “Último Grito” não havia nostalgia. Não
havia tempo para brincar de humanidade e perdão. Nem havia o espelho
da caridade a retratar a alma branca da tola hipocrisia.
Era uma favela peculiar. Era a última parada. Algumas lâmpadas
sem identificação e ligadas por fios roubados iluminavam
o marginalizado lugar.
Cortada por uma viela de terra e margeada por trinta barracos de madeiras
e papelões, era a própria vila da desesperança. Apenas
um boteco dava vida ao lugar: “Pinga do Zé. Cada gole bambeia um
pé.”
Quando chovia, formava um rio de lama que invadia os míseros
barracos e fazia da vida daquelas pessoas, verdadeira vítima do
dilúvio social.
Ninguém estudava. Havia algumas crianças que jamais tinham
tomado coca-cola ou assistido televisão. O sofrimento na carne era
a primeira e a última visão.
Não tinham conhecimento do nome do presidente, do governador
ou mesmo do vereador. Dali jamais tinha saído um voto. Quase todos
tinham apenas o primeiro nome, sem registro nem sobrenome.
Deus, a serviço do mundo, tinha se esquecido da favela “Último
Grito”. A graça aos abençoados sempre passara ao largo daqueles
corações abandonados.
Lá morava “Cachorro Loco”, um jovem de 14 anos, temperado pela
dureza do abandono, mais forte que a têmpera do carbono.
Já tinha sido violentado pelos maiores e duramente espancado
pelos piores. Várias vezes. Inúmeras vezes.
Trazia na pele cicatrizes horríveis, fruto da raiva de homens
que dormiam com sua bêbada mãe, em horas de gozo sobre seu
frágil corpo.
Sua mente trazia apenas dor e tristeza. Era a moradia da raiva que
espelhava a ausência de sonhos de se saber que não era gente.
Era “Cachorro Loco”, agora chefe da pobreza.
Conseguiu, na sombra da noite, matar “Nego Veio”, líder daquele
maldito lugar.
Desfilou pela avenida trazendo nas mãos a cabeça do inimigo,
como troféu de guerra a carimbar seu passaporte de reinado pelos
campos, sem lirismo de sua vida de bandido.
Ninguém entrava e ninguém saía sem ordens do Rei
da Favela. Fez de “Último Grito” um grande negócio. Passou
a comprar, de um político de Brasília, 50 quilos de
cocaína por mês.
Aprendeu com ele a arte do engodo. Misturava pó-de-coca com
pó-de-mármore, gesso e talco, dobrando seu peso e lucro na
venda. Tornou-se um excelente comerciante.
No troca-troca com policiais, recebia cobertura e informações
essenciais para seu benefício pessoal. Recrutou a meninada, que
inscreveu na escola para servirem de mulas e viciarem a garotada.
Num arroubo de civilidade, asfaltou a favela, levou luz elétrica
e rede de esgoto. Porém, nunca deixou de lado sua profissão
principal: a marginalidade.
“Último Grito” evoluiu. Hoje é visitada por artistas,
políticos, advogados e jornalistas, que para lá se dirigem
em busca de um pouco do pó da insanidade, que “Cachorro Loco” garante:
“Cocaína é a felicidade. É o sonho branco da sociedade.”
E ele afirma, sob os auspícios da Prefeitura Municipal, que
“Mocidade Independente Último Grito” subirá para o primeiro
grupo no próximo carnaval, de qualquer jeito, pois trará
o samba no pé, na força do jabaculé.
Mocidade Independente, Evoé!
Douglas Mondo
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