Diz um velho ditado que “os fins justificam os meios”. Como tantos outros ditos populares, seu sentido merece melhor reflexão. Sabemos muito bem haver determinados fins que, por si só, são realmente injustificáveis. Isto já desqualifica qualquer dos meios com que se intente a ele atingir.
Por outro lado, há meios que inabilitam moralmente qualquer tentativa de se defender, de se tentar legitimar o fim, seja ele qual for. Como se vê, tanto alguns “fins” quanto certos “meios” põem por terra esforços que se empenhem em tornar moralmente legítimo o emprego do referido ditado.
Na crônica “De Viena a Nova York e Cabul”, que divulguei há alguns meses, contei sobre o que fui testemunha, em Viena, em 1995. Imensos painéis fotográficos, exibidos em uma rua de pedestres, mostravam cenas terríveis da II Guerra Mundial. Uma longa faixa nos chamava a atenção, em vários idiomas: “Não podemos nos esquecer, para que isto nunca mais volte a ocorrer.” Lembrêmo-nos de que Adolf Hitler era austríaco, o que, no meu entender, mais valorizava aquela iniciativa.
Fazia então, em agosto/1995, 50 anos que terminara mais uma insanidade humana, a qual conduzira novamente o mundo para um conflito, até então sem precedentes. Ódios, preconceitos, racismos, mostravam outra vez a face monstruosa do ser humano que tanto se gaba de ser racional. Alguns julgaram que aquela seria a última das guerras. Ledo engano, quantas mais aconteceram depois.
Em verdade alguns homens, especialmente quando atingem o poder, têm provado ser animais desprovidos de raciocínio, ou que, quando usam a faculdade da razão, conseguem distorcê-la para atender a prazeres desumanos, se excedendo em perversidade, em crueldades tais e tamanhas que, como disse Bernard Shaw:... “arrancam lágrimas aos anjos.” Meios e fins se confundem na morbidez irracional de assassinos comuns que levantam uma bandeira, ou desfraldam um lema.
Inicio com este raciocínio porque me ocorre que o mês de Agosto passou, mas, quem se lembrou, para além do holocausto promovido pelos nazistas no afã de exterminar o povo judeu, do que fizeram com duas cidades japonesas? Muita gente nem deve ter-se recordado, outros, mais jovens, nem sequer aprenderam ou tomaram conhecimento. O povo japonês, com certeza, jamais se esquecerá. Muito pouco eu li na imprensa, especialmente na brasileira, sobre agosto/1945, o que me decepcionou.
Em minha ávida busca por matérias sobre aquele horror acontecido há 57 anos atrás, que jamais deveria sair de nossas memórias, deparei-me com o artigo assinado por Arnaldo Jabor, no jornal “O Globo”, de 13.08.2002. O título é: “O Ocidente esqueceu Hiroshima e Nagasaki”. Permitam-me transcrever aqui alguns parágrafos daquele documento que tenho guardado em meu arquivo de pesquisas. Escreveu Jabor:
“Há 57 anos, no dia 8 de agosto de 1945, um piloto americano pintou na fuselagem de seu avião o nome de sua mãe querida: Enola Gay. Depois, voando sobre o Japão, num belo dia de sol, despejou a bomba atômica que derreteu em 30 segundos cerca de cem mil pessoas, em Hiroshima. Ele viu com prazer e espanto o cogumelo em chamas se erguendo ao céu e, contente da missão cumprida, voltou à base, sendo que, no dia seguinte, outro aviãozinho matou mais cem mil e transformou também Nagasaki num deserto de metal derretido.”
“Nunca esqueceremos o holocausto que matou milhões de judeus, mas fugiu-nos da lembrança Hiroshima e Nagasaki, com seus fulminantes tornados de fogo. Por quê? — se a extinção em massa dos japoneses é tão apavorante quanto os fornos alemães, pois fez em um minuto o trabalho de anos dos nazistas?”
O artigo de Arnaldo Jabor faz uma análise completa do que foi aquele assassinato em massa, de extrema crueldade. Foi uma execução sumária de cerca de 210.000 pessoas inocentes, que haviam acordado para mais um dia normal. Homens, mulheres e crianças. Nem Hitler, do alto de sua empáfia feroz, preconceituosa, criminosa, imaginou tanto.
O “fim”, que seria a guerra
em andamento, travava-se em outros terrenos, mas este meio, assassino e
covarde, invadiu ruas, prédios, casas, escolas, hospitais, e até
hoje causa vítimas.
Muitos outros milhares de
pessoas foram morrendo no decorrer dos anos pelos efeitos das radiações
que a bomba atômica lá deixou, além das inúmeras
que passaram a nascer deformadas, ano após ano. E muitos entre nós
nem se lembram do ocorrido!! Quem sabe se lembrarão caso o fato
volte a se repetir com armas até mais poderosas. Não estamos
muito longe disso, infelizmente.
Considerando a situação política internacional atual, há que se fazer muitas reflexões. Passo a transcrever trechos de declarações dos Prefeitos, de ambas as cidades, que coletei nos noticiários internacionais entre os dias 08 e 10/agosto p.p.
“HIROSHIMA (Japão) - O prefeito de Hiroshima criticou os Estados Unidos por perseguirem unilateralmente seus interesses próprios e pediu pelo banimento mundial de armas de destruição em massa, no momento em que milhares de pessoas se reuniam na cidade a fim de marcar o 57º aniversário do primeiro ataque com uma bomba atômica.”
“Na cerimônia anual no Parque Memorial da Paz, Tadatoshi Akiba sugeriu que as políticas de Washington pós-11 de setembro são incorretas. "O governo dos Estados Unidos não tem o direito de impor a pax americana sobre o resto de nós, ou determinar unilateralmente o destino do mundo", opinou Akiba. Ele também convidou o presidente George W. Bush a visitar Hiroshima e ver "com seus próprios olhos o que armas nucleares provocam".
Na matéria do dia 10/agosto, saída em vários jornais do mundo, registrei a palavra do Sr. Itcho Ito: “ TÓQUIO - O prefeito de Nagasaki acusou os Estados Unidos de usar a luta contra o terrorismo como uma desculpa para renegar os acordos de não-proliferação nuclear. A acusação foi feita durante as comemorações da tragédia atômica que destruiu essa cidade japonesa e pôs fim à II Guerra Mundial.”
"Não podemos perdoar esta série de atos unilaterais por parte dos EUA que as pessoas dotadas de senso comum em todo o mundo também criticam", disse o prefeito Itcho Ito perante uma audiência de cerca de 5.500 pessoas. No discurso pronunciado no Parque da Paz, onde às 11h 02 locais se guardou um minuto de silêncio pelas vítimas da cidade atingida a esta hora, em 9 de agosto de 1945, pela bomba que causou cerca de 70 mil mortos, criticou o fato de os EUA se terem retirado do Tratado Antimísseis Balísticos (ABM), de 1972.
"Nagasaki precisa continuar sendo o último lugar atingido por um ataque nuclear", insistiu o prefeito, que não poupou críticas também ao governo de Tóquio. Na cidade de Hiroshima, onde foi lançada a primeira bomba atômica, morreram imediatamente cerca de 140.000 pessoas e a radiação contaminou centenas de milhares de outros japoneses.
Voltando ao prefeito de Hiroshima, o Sr. Akiba criticou também o que chamou de filosofia internacional de “eu vou mostrar a você” e “eu sou mais forte do que você”, referindo-se particularmente ao que vem ocorrendo no Afeganistão e no Oriente Médio. Muitas dessas vítimas são mulheres, crianças e velhos. (Tribuna da Imprensa – 10.08.2002)
Como o tema dessa crônica é sobre meios e fins, mergulho novamente no texto do Arnaldo Jabor, acima referido:
“Hiroshima foi o inicio da pós-modernidade técnica, guerra limpinha, do alto, prefigurando a Guerra do Golfo. Os nazistas eram loucos, matavam em nome de um ideal psicótico e “estético” de “reformar” a Humanidade para o milênio ariano. A bomba americana foi lançada em nome da “Razão”.
“O holocausto judeu nos horroriza pelo dia-a-dia burocrático do crime, pelo seu cotidiano “normal”, com burocratas contabilizando pacientemente quantos óculos sobraram nas câmaras de gás, quantos dentes de ouro... A bomba A foi rápida e eficiente como uma nova forma de detergente, um potente “mata-baratas”.
“A destruição de Hiroshima e Nagasaki não era “necessária”. O mundo não estava em perigo diante da invasão de ETs, como era a opinião dos milicos sobre os japs ; o Japão estava de joelhos, se rendendo, querendo apenas preservar o Imperador Hiroito e a monarquia instituída. A “razão” real era que o presidente (americano) e os “falcões” queriam testar o brinquedo novo.”
“Creio que, naquele momento infame do Ocidente, não havia conceitos disponíveis para condenar esse crime; o mundo pensante estava todo dentro de um grande lixo, numa vala comum de detritos humanistas. A época estava morta para as palavras, não havia mais sentido diante dos fatos. Só restou, na Europa, o desalento, a literatura do absurdo, o existencialismo, o suicídio filosófico, o niilismo em meio às ruínas.”
O autor segue analisando uma seqüência de fatos, registrados na História, até chegar ao ano de 1949 quando os comunistas explodiram a bomba H (de hidrogênio), e aí teve início a chamada “guerra fria”. Jabor encerra traduzindo uma preocupação que também é minha, e deveria ser de todos, até daqueles que não conseguem perceber estar nossa humanidade realmente sob séria ameaça, desta feita quem sabe, muito mais apavorante e avassaladora:
“Mas o que me faz escrever isso aqui não é nostalgia dos horrorres. Falo do presente, pois agora os protestos humanistas e racionais também estão ficando impotentes diante da marcha da máquina da morte. Existe no ar um caos conceitual. Surge de novo uma impotência intelectual, uma desesperança com o bom senso. De que adiantam a razão, a beleza, as palavras, diante da determinação do novo Império de Bush de “raspar” o Iraque, de apoiar o arrasamento da Palestina e de impor seu poder arrogante, justificado pelo “Pearl Harbour” de 11 de setembro? Eis a maior vitória de Osama: ele enlouqueceu a América ferindo Nova York. Aliás, o nome secreto do plano da bomba A, em 1945, era Projeto Manhattan. Pura coincidência...”
Ele diz: “...uma desesperança com o bom senso.” Uma verdade irretocável, pois como se esperar agora equilíbrio, tino, bom senso, de pessoas que acusam outras de terem armas de destruição em massa e exigem que as destruam ou serão atacadas, no entanto não aplicam a si próprios as mesmas regras, a mesma lei. Como confiar em quem desconfia de todos, mas não admite suspeitas sobre seus atos?
Como deixar o destino da humanidade em mãos e mentes que vivem a mentir sobre os verdadeiros “fins” de seus propósitos e que mais uma vez não hesitarão em usar os “meios” que julgarem necessários para os alcançar? Para esses senhores existirão sempre meios sem fins, até que a imprevisibilidade do futuro os enrede para um fim no qual os seus meios se voltem contra os próprios “feiticeiros”. Nada é infinito.
Francisco Simões