PSICOPIPAS...  JÁ OUVIU FALAR?

         A grande tragédia da humanidade é exatamente seu progresso, sua evolução.  Tanto batalhamos para esmiuçar os mistérios da vida, tanto chafurdamos nos poços mais profundos desta vida, que terminamos por nos enterrar nessa melancólica falta de emoções verdadeiras, nessa ausência dos não-desvendamentos que, a rigor, deveriam continuar existindo para dar ao homem a necessária dose de coragem para viver, vontade de desbravar, de vencer...
         Vivíamos bastante bem com nossos enigmas, Deus nos falava por parábolas que nos enchiam os ouvidos com mil e uma possibilidades e, dessa forma, mantínhamos algo de divino entre nós, éramos protegidos de nós próprios e de nossos próximos porque contávamos com as névoas, as luzes difusas do saber, as possibilidades de interpretação de cada um, o sabor do inédito, todos os dias, o inédito.
         Tudo, hoje, tem explicações práticas à luz da psicologia, da tecnologia, da ciência, das teorias formuladas e defendidas por estudiosos, que se esforçam para não nos permitir um único sonhozinho, uma boa ilusãozinha besta, uma bobagem qualquer, nada. Se o cidadão, digo, o “indivíduo” pega na xícara para tomar um corriqueiro café, pronto.  Anote as análises: a) pegar na asa da peça mantendo o dedo mindinho em riste é sinal de educação pouco refinada; b) apertar as mãos em torno da xícara (ato antigamente visto como simples vontade de esquentar os dedos) revela sovinice e tendência sado-masoquista; c) levantar a xícara e assoprar o café (era para não queimar os beiços) demonstra que a pessoa sofre de esquizofrenia paranóide e não é capaz de resolver problemas de álgebra...
        E a gravidez ? Bons os tempos da gravidez de nossas avós!  Porque agora, não só já se sabe de antemão o sexo dos bebês como se pode até mesmo programá-lo, sem contar que o médico, graças a mais alta ciência e tecnologia, também pode prever como será a criança, que doenças enfrentará, etc., com chances de modificar tudo, a pedido dos pais. Ou sob rigorosa indicação “médico-social”: “Prezada futura-mamãe, seu nenê nascerá a 17 de abril, será de Áries, como você queria, mas terá cabelos crespos demais e vai  apresentar caráter um tanto folgado, pouco inclinado aos estudos, com tendência a forte cheiro de chulé e barriga flácida; além disso, será péssimo na posição de zagueiro central e entrará em conflito com sua auto-imagem, e isso, fatalmente, fará dele um homem depressivo e solteirão. Podemos mudar isso com uma reparadinha nesse gene, vamos colocar cabelos menos rebeldes no nosso varãozinho e...”
         Na telinha da tv, famílias inteiras aparecem reunidas num evento sobre saúde e educação. Enquanto os adultos fazem exames médicos básicos, oficinas são realizadas para distrair as crianças e, em uma delas, pais e filhos fazem prosaicas pipas com vareta de bambu, cola e papel de seda. A repórter entrevista a psicóloga, que se apressa em dar fundamentos psico-sócio-motores à atividade, revelando que não se trata pura e simplesmente de uma brincadeira: “Envolve o desenvolvimento do caráter da criança, o papel do pai-de-família no crescimento do filho “enquanto” (sic) indivíduo, norteia as relações familiares, possibilitando a psico-integração do papel paterno com a vigência do papel filial, promovendo um saudável amadurecimento da atividade psico-motora infantil, capaz de levar a criança a desenvolver seu potencial artístico, emocional e lúdico, fatores primordiais da harmonia social, capazes de afastar males como o desajustamento sócio-afetivo e a adesão às drogas, graças ao...” Credo!

Doca Ramos Mello

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