Vagarandar de bicicleta e enamorar-se do mundo

Inicio esta crônica enquanto me preparo para sair para um passeio de bicicleta. Hesito entre a leveza da escrita que se enuncia e a promessa da paisagem que, lá fora, se exibe entre aconchegante e áspera. São oito horas. Calor forte. Céu límpido. Pássaros e sol sobrevoam nuvens brancas. Esparsas e discretas.

Não resisto ao convite dos campos amarelos, pontuados de manchas negras e brancas, pastando. Apresso-me em sair. Caso contrário, desisto. Na tela branca do computador, imensa geleira sem fim, descansam, para sempre, as primeiras linhas desta possível crônica. Talvez nunca a termine. Na verdade, nunca será terminada de por completo. E não é assim mesmo que acontece, já que os textos renascem e recomeçam toda vez que um leitor dele se aproxima? Em qualquer tempo e lugar. Pode ser que, ao voltar de minha aventura sobre duas rodas, este texto não aceite mais minha presença. Dá-se por acabado e pronto. Mas quem sabe trarei do passeante olhar imagens mais vivas e claras. Sairei sem olhar para traz. Sinto que as palavras me atraem, prendem-me. Tal sua magia e sedução. Fecho os olhos. Imagino o que me espera lá fora. Dentro de mim mesmo passando por novos caminhos. Atravessando ruas e becos. Trilhas. Encruzilhadas e trevos. Trevas. Desses que a própria vida se nos apresenta a cada instante. Decido, então, pelo que se me oferece em trânsito. O olhar vagarandando a superfície das coisas, a pele mesma do mundo. E as rodas, não seriam elas olhares atentos, cortando vento, pedras e poeira. O tempo curto da passagem. Se demorar mais um pouco aqui não terei ânimo para pedalar a manhã de sol. Melhor mesmo é fechar os olhos. Sair.

Como previa, na volta não tinha nada para escrever. Na verdade, a vida não me dá tempo para semelhante prazer. Fui obrigado a deixar o texto em estado de desejo. À espera. À espreita. Desejoso e quieto como estava, não fugiria. Não saltaria do vidro para o mais branco da vida. Antes de sair novamente, arrisco algumas imagens colhidas ao léu durante o passeio. Aqui uma galinha com cerca de dez pintinhos , de todas as cores, cisca restos de comida à beira do asfalto. Ali, a inscrição ilegível sobre pneus ,artisticamente organizados, quase me derrubam de curiosidade. Homens convexos conversam, em grupos de dois a cinco, perto de um caminhão carregado de mercadorias irreconhecíveis. Pedras moídas, certamente. Mais longe, divisas e arbustos. Um casal de avestruz me transporta para os desertos africanos. Mas o grito de um gavião , orgulhoso e solitário, acorda-me a realidade. Da noite anterior me chegam lembranças. Vêm-me à cabeça e ao coração fragmentos de uma crônica, amiga e generosa, sobre arco-íris e esperanças. Abro e fecho os olhos várias vezes. Ouço vozes de criança, de uma criança muito especial, talvez o Victor, menino que vê arco-íris mesmo em noites muito noturnas e silenciosas. Pelo menos foi o que me disse o Roberto Mendonça, seu pai , e jornalista de palavras mágicas, quando a rudeza da profissão o permite. Diz o Roberto que, pelas bandas de cá, citando o Victor, os arco-íris fazem festa e dançam no céu. Podem ser vistos a qualquer hora e momento. Parece que as cores moram mesmo é dentro da gente. Daí, basta desejar para que se formem os mais densos arco-íris que se tem notícia na história do homem. Em Arcos é assim: canários fazem ninho no arco-íris da mesma forma que nas copas das árvores ou nos buracos dos cupins.

Estou escrevendo estas últimas linhas um dia depois de iniciar esta crônica. Mas ainda agora posso sentir a atrito dos pneus nos paralelepípedos. Paralelepípedo, palavra difícil esta. Trepidante. Difícil de dizer e de pisar. Dura demais para se calçar ruas. Para ligar casas e pessoas. Para servir de base, de fundamento para cidades.Também ouço o barulho das rodas fugindo sobre cascalhos, folhas secas e galhos. Sobre jornais velhos, palavras rasgadas, latas de lixo e cacos de vidro. Sinto o cheiro da poeira e do vento. Cheiro bom de comida vindo das casas. Arrisco-me em novos e imaginários roteiros. Deixo os olhos passearem livres o mundo. Não o leio exatamente. Pois, ler é aventura maior como diria o mestre Paulo Freire, para quem ler não é simplesmente passear por cima das palavras. É ter uma compreensão profunda do mundo. Uma estética do lido. É, de certeza, cultivar a boniteza e a liberdade da criação. Poética sem códigos perfeitos nem definições prévias. Se assim for, e pessoalmente acredito que o seja, posso ler enquanto pedalo por este vasto mundo de sem meu deus. Enquanto passam as coisas imagino novas formas de reorganizá-las. Aquela árvore copuda e redonda, por exemplo, mereceria estar mais perto de uma outra, mais frágil e solitária. Quem sabe trocaria as casas e as cercas de lugar. Restauraria montanhas. E no lugar das crateras nasceriam castelos vegetais com amplos salões recheados de bibliotecas, de belos livros. Nada de latifúndios desabitados ou, ferozmente, habitados de medo, de ódio e traição. Nada de vãs preocupações.

Todas estas idéias e imagens me chegaram através da carinhosa crônica do Roberto, publicada dia 15 de setembro, neste jornal – Hoje em Dia - , na qual ele fala do Curso de Jornalismo da PUCMinas Arcos, onde trabalhou como professor tempos proveitosos, nomeando cada um de seus alunos, recordando lugares e amigos. Enquanto vou vagarandando, por aí a fora, ou melhor, bicicleteando, descobrindo novas formas de ver e de estar no mundo, de enamorar-me dele. A realidade me seduz com seu poder concreto e sincero. Com a leveza e rapidez, com a liberdade e multiplicidade de sentidos de quem passa, de bicicleta, por cima do arco-íris. Em qualquer lugar do planeta ou no interior de Minas. Mais especialmente, diria o Roberto, repetindo seu filho Victor, em Arcos.
 

João Evangelista Rodrigues

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