No pranto cinzento daquele domingo, ao mirar a tua face pálida
feito cetim, confesso que escapou do meu peito um soluço, como se
fosse um anúncio de orvalho prestes a cair dos olhos, por querer-te
ainda perto de mim.
Ah! Eu era tão pequeno que naquele dia me perdi em meio a tantos
rostos em triste despedida.
E na fantasia própria da infância, por um instante achei
que tu brincavas, fingindo letargia, deitado naquela cama feita sob medida.
Mas logo percebi a gravidade da situação, quando perto
de mim, alguém comentou em tom de oração, como tu
estavas mais bonito do que em vida, vestindo aquele belo terno.
E eu, bem baixinho, te pedia desculpas, dizendo que preferia mil vezes
te ver usando o pijama mais singelo, se pudesse ter de novo uma migalha
do teu abraço paterno.
Era a primeira vez que eu ouvia o rufar das asas desse Arcanjo Libertador
chamado Morte. E quando ele abriu o imenso par das suas asas de agonia,
cortando o fio da tua vida, também iniciou o meu coração
no oficio da dor, vertendo o vinho da saudade na fonte de toda a minha
alegria.
É bem verdade que, até por obediência a um
pedido teu, feito quase profeticamente um mês antes, naquele dia
me contive e acabei não chorando.
Porém nos dias que se seguiram, confesso que foi difícil
ser criança diante do vazio da tua presença.
Na saída da escola, durante meses ficava te esperando, muitas
vezes voltei para casa de mãos
dadas com a tua ausência.
No futebol, a cada gol que fazia, procurava o teu sorriso nas arquibancadas,
e como não encontrava, tornei-me desde cedo um ator, intérprete
de alegria não vivida.
Ao andar de bicicleta nos domingos e feriados, fingia que tu estavas
ao meu lado, e que o vento em meu corpo eram tuas mãos embalando
e aquietando minha saudade.
Mas difícil mesmo era lidar com os meus ais, quando sentado
em tua poltrona, ficava esperando que do nada tu surgisses, adentrando
a nossa casa como os raios de sol da manhã, desfazendo toda a névoa
existente naqueles cinzentos dias dos pais.
E quando pensava que não agüentaria mais, lembrava-me então,
de como, todos os dias à noite, tu ias de mansinho em nosso quarto
e nos ensinava a orar.
A partir de então, a oração tornou-se um porto
seguro, onde passei a ancorar o navio do meu coração, cheio
de medos, dúvidas, tristezas e saudades e sempre vazio de alegrias.
No auspicioso cais da fé, encontrava o tempo necessário
para repousar a cabeça no colo das lembranças, e assim descansar
antes de zarpar novamente, singrando esse revolto mar chamado vida.
De ti, herdei o gosto pelas leituras e pela escrita, e apesar da minha
pouca idade, passava horas e horas lendo os teus livros.
E foi neles que encontrei personagens como Caronte, presente no Livro
dos Mortos do Egito Antigo, a quem prontamente inclui nas minhas preces.
Assim, todos os dias, antes de dormir eu dizia: “-Ó poderoso
Caronte ! Eu sei que é longa a travessia do seu barco pelo Rio da
Morte. Mas escuta-me! Leva o meu pai em segurança. Conduze-o com
cuidado ao seu destino de homem bom. Se assim o fizeres, prometo que não
te darei nenhum trabalho no dia em que tu vieres me buscar.”
E assim, os dias se passaram, e o poeta do tempo, escrevendo com as
tintas da emoção, nas páginas do seu livro admirável
chamado “Recordação”, seguiu adiante e resoluto, cumprindo
o seu ritmo inexorável.
Transcorridas duas décadas e meia desses acontecimentos, aqui
me encontro escrevendo essas linhas, não para ti, pois sei que sempre
estiveste presente em nossas vidas, mas para algumas lembranças
que teimavam em permanecer escondidas em meio às nuvens cinzentas
daquele dolorido domingo.
Acabei de levar minha filha para cama, e sentado agora na escrivaninha,
percebo o quanto nós estivemos juntos durante todos esse tempo.
Pois aquela sensação de vazio dos primeiros anos após
a tua partida, foi aos poucos sendo preenchida com o exemplo que tu nos
deixaste e que nós nos esforçamos por seguir a cada dia.
E por ironia do destino, quando também me tornei pai, foi justamente
a tua ausência que me ensinou a colocar a família como prioridade
absoluta, nessa estressante agenda das obrigações diárias.
Por tudo isso, neste momento especial, envio a ti, meu primeiro e sempre
eterno amigo, a mais profunda gratidão filial.
Subitamente, pela janela do escritório onde escrevo, entra uma
brisa suave e refrescante, e nela diluída, percebo uma presença
de pai inundando meu coração de completa serenidade.
Fecho os olhos suavemente, e sinto que todo o meu ser se regozija,
pois sei que a partir de agora restará apenas a saudade
Emmanuel Chácara Sales