É manhã de um nublado domingo de verão, mais parecido
com um típico dia de inverno. Lá fora, uma chuva fina acentua
a sensação de frio, e desenha na vidraça, belos brocados
de rendas que mudam de forma a cada instante.
Sentado em minha escrivaninha, observo em silêncio a tela em
branco do editor de textos no computador. É sempre assim! Dentre
em pouco, as idéias surgirão em minha mente saltando para
a tela em forma de um soneto, de um conto ou mesmo uma crônica do
cotidiano. Guiadas pela razão, antes de serem codificadas em forma
de linguagem escrita, elas passarão pelo reduto do coração
para receberem uma boa dose de inspiração poética.
Logo após, retornarão ao córtex cerebral viajando
pelas sinapses nervosas até serem traduzidas pelos neurônios
na linguagem ritmada dos dedos que tamborilam no teclado do computador.
Tudo isso em apenas alguns segundos.
Durante esse verdadeiro ritual chamado oficio da escrita, o meu ego
analítico, cartesiano, investigativo e que gosta de uma boa prosa,
falada e escrita, se regozija. E a causa de todo esse prazeroso alarido,
está na própria natureza falante do ego, que detesta perder
o controle da situação, e por isso mesmo quer interpretar,
reinterpretar e analisar sob a sua ótica todos os fatos externos
e internos ao ser humano. Vaidoso, ele adora ser o centro das atenções,
enchendo-se de orgulho quando seus textos são elogiados ou mesmo
publicados. Pois é! Você já pensou um dia em ver o
seu ego desconcertado e irritado por não saber o que fazer?! Parece
difícil, não?! Pois saiba que isso é perfeitamente
possível. Basta trancá-lo junto com você num recinto
fechado, longe de qualquer apelo auditivo e visual, de preferência
na penumbra. Um lugar onde, por alguns instantes, existam somente você,
o ego e o silêncio. Experimente! Será um verdadeiro Deus nos
acuda! Passados os primeiros momentos, logo surgirá a inquietação
do ego. Em primeiro lugar uma invasão de pensamentos, depois uma
sensação de calor ou frio, a seguir uma dor repentina em
alguma parte do corpo, vindo depois um comichão na ponta do nariz,
e daí a pouco você se levantará e sairá correndo
daquele céu infernal, louco para voltar ao seu inferno celestial,
sempre cheio de barulhos, falação e muito agito mental.
Em contrapartida, o meu Eu, a verdadeira testemunha de tudo que me
acontece, mineiramente, prefere observar em silêncio a ação
do ego, buscando ampliar o seu atual espaço de atuação
que, façamos justiça, ainda é muito pequeno . De forma
discreta mas eficaz, o Eu parece sempre disposto a minar dia a dia a força
desse império milenar construído pelo ego. Para isso, está
muito bem municiado de um sem número de simples e ao mesmo tempo
profundas concepções sobre a vida, que na maioria das vezes
enfraquecem as efêmeras razões alegados pelo ego. Por exemplo,
no tocante à literatura, segundo o meu Eu, a poesia não necessita
de palavras para ser expressada e entendida, pois a fonte original de todo
o texto poético seria o coração. E na linguagem do
coração as palavras são absolutamente prescindíveis.
De acordo com ele, o coração domina inteiramente a razão
e por conseguinte a mente. Outro dia, em suas elucubrações,
buscando demonstrar (sim, é isso mesmo... demonstrar, pois ao contrário
do ego, não é característica do Eu provar coisa alguma)
a ascendência do coração sobre a razão, a mente,
o cérebro e correlatos, o Eu me perguntou se eu saberia dizer porque
que é que quando gravamos algo na memória, costumamos falar
que sabemos aquilo de cor. Diante do meu silêncio, ele me explicou
que a palavra cor se origina do vocábulo cordis, que em latim significa
coração, ou seja, ao dizermos que sabemos de cor queremos
dizer que sabemos de coração. Ao ver o meu sorriso de aprovação
diante daquela explicação, o ego me olha e torce o nariz,
balançando negativamente a cabeça, pois percebe que
está perdendo terreno.
Bem... deixando a lingüística à parte, o Eu sempre
tem exemplos dignos de nota. No caso da situação em que a
poesia não necessita de palavras para se expressar, o seu exemplo
preferido é o caso da plenitude do vazio de uma folha de papel em
branco. Como todos sabem, uma folha de papel é composta de fibras
de celulose. Uma das formas de se obter a celulose, é mediante o
corte e o processamento de eucaliptos em usinas de beneficiamento. Por
sua vez, uma folha de eucalipto, antes de ser beneficiada, realizava a
fotossintese, e para que isso ocorresse era necessário o concurso
de um raio de sol. Em resumo, segundo o Eu, uma simples folha de papel
em branco contém um raio de sol enclausurado e também a essência
do perfume das folhas de um eucalipto. Agora, sou eu quem olha para o meu
ego escrevente, que nesse instante está furioso e inconformado,
e digo : — Admita vai ... isso é pura poesia.
Olho o relógio e depois a tela ainda vazia do computador, e
decido então colocar um fim nessa interessante tertúlia
travada no campo de batalha da literatura, entre esses dois aspectos fundamentais
do ser humano, pedindo desculpas à verborragia eloqüente do
ego até pela preguiça dessa sonolenta e chuvosa manhã
de domingo, e declarando a vitória do Eu na batalha daquele dia.
Desligo o computador sem nada escrever, e para me proteger do frio,
abraço uma folha de papel que acabei de retirar da impressora e
fecho os olhos. Lá fora a chuva aumenta, enquanto aqui dentro o
frio aperta. E eu ali sentado, ouvindo o som da canção do
silêncio que flui suavemente do meu Eu, sentindo o calor gostoso
do raio de sol enclausurado naquela papel e o envolvente perfume de um
bosque de eucaliptos em flor, curtindo assim um domingo de verão
bem particular, cheio de sol, natureza e muito sossego.
Enquanto isso, em meio a um amontoado de papeis amassados, cheios de
idéias descartadas e jogados dentro da lixeira, ouve-se o resmungar
de um ego tinhoso ali escondido, à espreita de uma oportunidade
de revanche contra o Eu, armado até os dentes com belos sonetos,
palpitantes contos e crônicas de protesto, todos eles, é claro,
em boa e fluente linguagem escrita.
Emmanuel Chácara Sales