Lembro-me, como se fosse hoje, daquelas duas meninas sentadas em frente
de sua casa. A diferença de idade era pouca, deviam ter 6 e 4 anos,
quase nem se notava. Quem não as conhecia, podia jurar que eram
gêmeas: roupas sempre combinando, só divergindo na cor. Assemelhavam-se
em tudo: do porte físico ao corte dos cabelos. Eram vistas sempre
ali, passando as tardes à beira da calçada. Por este
fato peculiar e rotineiro, eram conhecidas como "as meninas do portão".
A rua era movimentada, mas naquele tempo, anos 67/68 (não sei precisar),
não havia essa onda de violência que vivenciamos hoje. O único
temor das meninas era "o homem do saco", uma invencionice de sua mãe
(dos pais em geral) para mantê-las no limite entre o portão
e a rua. Imagine se elas iriam arredar o pé dali quando havia um
"monstro" daqueles à solta! A simples idéia do tal homem
as aprisionando no saco, levando-as dali para, sabe-se Deus onde, era apavorante!
Qualquer desconhecido que passava, especialmente catadores de lixo ou entulho,
era "pernas, pra que te quero", um verdadeiro atropelo!
Havia personagens estranhos naquela cidade: Guarujá, no litoral
sul de São Paulo, sinônimo de beleza e riqueza, em virtude
das belas praias e, também, àquela época, por ser
estância turística frequentada pela alta sociedade paulistana.
Na verdade, a cidade é uma ilha (Ilha de Santo Amaro). Pois bem;
aos olhos daquelas meninas, os tipos mais esquisitos habitavam todos ali.
Sua pouca dimensão de mundo lhes dava essa certeza. Havia, na redondeza,
uma mulher conhecida por "Maria Cearense" e um negro gigantesco chamado
"Simplício", que eram seu suplício. Maria Cearense vivia
alcoolizada, parecia um guarda-roupas ambulante: vestia toda a indumentária
que possuía, umas peças por cima das outras. Só não
vestia a roupa de baixo e, como tinha costume de levantar suas saias em
plena rua, imaginem o espetáculo! O show particular da Maria não
terminava aí: era dada a escândalos pitorescos, com direito
aos mais "cabeludos" dos palavrões, que as meninas repetiam sem
saber o significado. Não deixava de ser engraçada aquela
mulher, mas sua história, se havia algum fundo de verdade no que
diziam, era triste. Não sei detalhar o fato, mas contam que fôra
professora e que a morte da filha a deixou desequilibrada, daí à
bebedeira e toda a degradação posterior..
Simplício era um homem grosseiro em todos os aspectos, particularmente
na feição do rosto, na altura (descomunal, na visão
das meninas) e nos grandes pés, sempre descalços, cuja
sola possuía rachaduras medonhas. Também sempre ébrio,
perambulava acompanhado de seus cães. Nada de muito peculiar para
narrar, apenas o arrepio na espinha que sentiam as meninas ao vê-lo,
como se tivessem visto um ser sobrenatural (e que cheirava muito mal!).
A vida desfilava frente ao portão daquelas meninas e elas ali,
espectadoras fiéis, acenando, sorridentes, para o tempo. Conforme
cresciam foram conhecendo alguns transeuntes pelo nome ou apelidos que
inventavam. Gostavam de brincar de esconder atrás da mureta da varanda,
de onde gritavam chamando a pessoa e, novamente, se ocultavam. Havia um
rapaz magro, com dentes salientes, que apelidaram de "coelho" (seu nome,
na verdade, era Luis). E gritar "coelho" ao vê- lo passar, era uma
festa! Ele também parecia se entreter com a brincadeira das meninas.
A certa altura, já mais crescidas, deduziram que o tal "homem
do saco" não existia; era pura fantasia. E começaram a se
soltar. A diversão predileta era correr atrás de bicicletas,
dar impulso e pular na garupa pegando uma carona até a esquina,
onde saltavam e retornavam para aguardar o próximo ciclista. Ninguém
se importava, pois todos que faziam aquele percurso, vindos do trabalho,
já conheciam as meninas de vista. O máximo de perigo que
havia nessa aventura era o desequilíbrio da pobre vítima
que conduzia a bicicleta. Tempos bons, de liberdade e ingenuidade!
Uma das meninas, a mais velha, era eu. Desde pequena sou assim: vejo
a vida passar por mim, desfilando personagens, tirando outros de cena deste
meu estático e imutável palco…eu apenas atuo segundo o roteiro
(rotineiro). Hoje, não fico mais no portão, nem poderia,
numa cidade onde qualquer descuido é um convite ao assalto. O "homem
do saco" deixou de ser uma lenda urbana, cedendo seu lugar no medo popular,
para assaltantes, seqüestradores, molestadores de crianças,
traficantes
Vejo a vida da janela e minha rua não é movimentada como
aquela da infância. O quadro que se pinta à minha frente é
belo, se levar em conta a natureza que o perfaz: tem tons do verde da fazenda
adiante de minha casa e dos campos mais ao longe; o amarelo das flores
das árvores, nesta estação se faz presente, pontilhando
algum contraste em meio a tanto verde; o azul do trecho de céu que
minha vista alçança é mais uma matiz nesta minha parca
aquarela.
A monotonia se quebra no horário em que um ou outro morador
circula pela rua. O silêncio é rompido apenas com o canto
dos pássaros, que são muitos, e por meus soluços (que
apenas eu, ouço). Para os moradores de minha pequena rua, devo parecer
uma gravura na moldura da janela; pintura que já se integrou à
paisagem. Estou inerte como as árvores e plantas destes campos.
Entretanto, como elas, pulso vida.
Sou feliz aqui, em família, mas além das divisas de meus
muros, nesta cidade interiorana tão distante de meu mar, não
vislumbro nada. Estou longe de minha ilha; longe de minha irmã,
companheira de calçada que ainda mora à beira-mar; longe
daquela menina do portão, cujas perspectivas futuras eram infindas.
Sou a mulher debruçada na janela, a sentinela de olhos marejados.
A esta altura, bem mais próxima do fim, vou tocando a vida,
indiferente ao seu chamado. A vejo apenas passar por mim,
sofregamente, na rotina fatigante dos dias.
Voltei a fumar, para ter companhia.
Valéria Tarelho