Desde
que me entendo por gente e desde quando consigo me lembrar, eu queria tocar
piano. Antes mesmo de cantar ou atuar, o meu sonho de gente pequena era
poder tocar piano. Não que eu quisesse ser pianista fazendo desse
instrumento a minha profissão. Era mesmo um prazer que eu sentia
ao ouvir o som do piano que me fazia desejá-lo. Um prazer pessoal,
como se fora necessário que eu o soubesse tocar.
Quando eu tinha lá meus nove anos de idade comecei uma campanha
para ganhar um piano de meus pais. Usei desde o recurso de bilhetes pela
casa e por seus pertences pessoais e roupas, até choro, manha e
cenas de comiseração. Tolice, todos os meus argumentos foram
ignorados e no meu aniversário, para minha surpresa eu ganhei um
violão.
Um violão, segundo meus pais, seria uma coisa mais fácil
de se livrar assim que meu fogo de palha infantil o deixasse de lado. Um
piano era caro e grande demais para satisfazer um mero capricho de uma
menina mimada.
Quando desencapei o violão, que era pequeno pra poder caber minhas
mãos, entretanto, em vez de uma decepção arrasadora
eu lembro que me apaixonei, afinal, eu ia poder aprender música
e me preparar melhor pra quando o piano viesse.
Aprendi violão durante anos e anos da minha infância e o toquei
até meados da minha adolescência e sem nenhuma modéstia,
eu o fazia divinamente bem. Meu professor era um sujeito muito tímido,
que entrava na minha casa, ainda depois de anos, com a cabeça baixa,
falava muito pouco e raramente aceitava os biscoitos ou sucos que minha
mãe oferecia. O nome dele era Sérgio, um sujeito comum, nem
bonito, nem feio, nem gordo, nem magro, calvo e que agora não sei
se era alto ou se eu lembro dele alto porque eu era uma criança.
Sérgio adorava dar aula e tinha um profundo amor pelo seu instrumento,
que de alguma forma contagiava, e, impossível esquecer, como Sérgio
ficou feliz o dia que eu anunciei que queria aprender clássico!
Escolhi tocar violão clássico acho mesmo que por causa do
desafio maior que aprender aquelas cifras fáceis sem nenhum "appeal"
e algum tempo depois eu senti que um professor particular era pouco pra
minha curiosidade musical.
Aos treze anos de idade, tendo meus pais observado que o fogo de palha
não passara, eu fui matriculada na primeira escola de música
por qual passei, que era uma das melhores escolas do Rio de Janeiro: Villa
Lobos, que eu adorava, que eu simplesmente adorava... porque além
de eu estar aprendendo algo que de fato eu gostava, me dava uma independência
que eu nunca tivera. Eu podia andar de metrô sozinha, depois que
meu pai me colocava no trem, o que era um desafio, porque meus pais não
me deixavam muito só e saltava lá na estação
Carioca, atravessava o largo e me dirigia até a escola que ficava
ali pertinho, quase em frente à loja de instrumentos "A guitarra
de Prata", que eu sempre namorava a vitrine, sempre vasculhava as novas
partituras que chegavam e pra onde sempre, sempre, sempre depois da escola,
eu corria pra assistir o final da aula de piano que era dada ali, quase
no meio da loja.
Depois de formada em teoria musical e depois de ter aprendido o que eu
achava que era suficiente sobre violão, eu me profissionalizei em
música. Na verdade, eu comecei a querer fazer da música uma
profissão por volta dos treze anos de idade, quando eu comecei a
me apresentar em algumas casas noturnas, sempre acompanhada por meu pai,
que sentava na platéia orgulhoso da cria. Aliás, meu pai
não só me acompanhava às casas, como também
montava o palco, equalizava o som, checava a luz, participava dos scripts,
cuidava da minha agenda e tudo mais que um pai herói pudesse fazer.
Aos dezesseis anos eu prestei prova para a Ordem dos Músicos do
Brasil e passei, o que me tornou uma profissional do canto, que comecei
a aprender pouco antes de entrar para a escola de música, com uma
professora, ex diva, Déa Scobar, que sonhava em me fazer uma prodígio
da ópera por causa da minha rara voz contralto, e para quem eu nunca
disse que eu queria mesmo era tocar piano. Aos dezesseis anos também,
acho que por causa dessa coisa geminiana que deixou nunca eu me fixar em
um único interesse, eu diversifiquei meu aprendizado artístico.
Às voltas com a faculdade de arquitetura eu me desdobrava entre
projetos, ensaios para shows, produção do meu primeiro disco
pela gravadora Continental, que depois me fechou as portas porque eu surtei
e xinguei o diretor, Jaime Pires, por ter me cantado descaradamente. Nesta
época eu também tinha resolvido que compraria meu piano de
qualquer jeito, então eu tive a brilhante idéia de procurar
um emprego para que eu pudesse, por mim mesma, realizar meu sonho.
Eu cursava a Universidade Santa Úrsula por dois motivos; eu era
muito nova quando ingressei na faculdade, tinha quinze anos e meus pais
achavam que uma menina de quinze anos estaria mais segura estudando perto
de casa e também porque a Santa Úrsula era uma boa escola
de arquitetura. Mas a Santa Úrsula era uma faculdade caríssima
e eu não me sentia no direito de encher meus pais novamente com
a idéia do piano e de mais um curso. Então, um ano depois
eu prestei vestibular para a faculdade Federal, que era longe, mas que
era a melhor faculdade de arquitetura que alguém podia cursar, mas
que era também a mais difícil e concorrida porque era gratuita,
logo, nem pensar em transferência, porque caso acontecesse ainda
demoraria anos pra que eu conseguisse. Bem, eu, como em tudo na minha vida,
tinha urgência... A Federal Fluminense foi a que eu escolhi, porque
o campus era um bosque que dava pra praia e tinha um ar bucólico
que não tinha no Fundão, ainda mais com aquele casarão
cuja construção datava de mil oitocentos alguma coisa. Com
um ano de arquitetura já cursado, isso me colocava à frente
de muitos dos candidatos, principalmente na prova de habilidade específica
e como eu esperava, eu consegui colocação e mudei de faculdade.
Ficava mais fácil assim argumentar com meus pais, afinal, eu havia
rompido pelo menos este laço financeiro. Montei um currículo
e fui até à Escola de Música Antônio Adolfo.
Cheguei lá e fui clara "quero fazer seu curso de canto popular e
me tornar uma de suas professoras". Eu lembro que no dia que me formei
eu entreguei a ele o programa de um curso de canto que eu havia idealizado
e ele me deu a sala, os horários e o emprego. O curso fez sucesso,
as turmas cresceram e eu aproveitei para ir até outra escola de
música, a Cenário, do Tomás Improta e oferecer meu
trabalho. Então, agora eu dava aulas em duas escolas, fazia faculdade,
dava shows e tudo dava tempo, tudo se encaixava e eu lembro que acordar
às cinco da manhã, pegar um ônibus até às
barcas, atravessar a baía e tomar outro ônibus para o campus
onde eu tinha que estar às sete, naquele tempo nunca era cansativo,
nunca era chato, nunca era problemático mesmo que em alguns dias
eu fizesse este trajeto duas ou mais vezes, porque tinha que voltar para
o Rio para dar aulas.
Depois
de um ano eu comprei meu piano. Era um piano alemão de armário,
cepo de metal, três pedais, que eu rodei a cidade inteira para encontrar,
porque até hoje eu não sei porquê, eu queria mais que
um piano, eu queria um que fosse antigo, de madeira nobre trabalhada, teclas
de marfim e o meu tinha uma medalha de bronze cravada nele, porque ele
tinha sido o terceiro colocado em um concurso de qualidade do século
passado. Estava em perfeito estado e tinha um som inigualável, tinha
um som do século passado. Paguei por ele uma pequena fortuna, porque
além de ser um bom instrumento eu o comprara em um antiquário.
A minha felicidade de ter que mudar a decoração do quarto
para a entrada do piano não posso descrever porque sou inapta. Mas
era uma sensação doce como são as sensações
felizes de momentos de ternura.
A minha paixão fez eu aprender piano quase de um dia para o outro.
Eu passei a primeira semana inteira faltando aulas e desmarcando alunos,
porque não conseguia deixar de estar sentada em sua banqueta ou
tirar meus dedos de suas teclas. Ninguém em minha casa, nem mesmo
os meus vizinhos deviam estar agüentando aquele som repetitivo das
notas de quem está aprendendo a tocar, que saía do meu piano
alemão, mas em casa, ao contrário de reclamarem, pediam "toca
de novo!", encorajavam "nossa, já está bem melhor!" e como
o interfone nunca tocou com reclamações, eu continuei. Com
o instrumento em casa eu pude começar a dar aulas particulares de
canto e as minhas aulas, porque tinham um método diferente e inovador,
foram matéria de jornal e revista e a minha casa entupiu de alunos,
que eu tive que parar de dar aulas nas escolas de música.
Um dia eu entrevistei um rapaz chamado Paulo, que queria ter aulas comigo
e depois da entrevista e dos testes, depois do aval da fonoaudióloga,
eu comecei a dar aulas a ele. Paulo além de cantar era poeta, escritor
e mantinha sua arte trabalhando como bancário concursado do Banco
do Brasil. Óbvio que esta identificação imediata nos
aproximou e nós nos tornamos mais que aluno e mestra, amigos. Eu
sabia, que assim como eu, Paulo tinha o sonho de aprender piano e sabia
que assim como eu, ele conseguiria, o que eu não sabia e nem Paulo
e que viemos a saber muito tempo depois, é que ele era portador
do HIV e que pouco havia a ser feito naquela época em relação
a isso, senão rezar por uma vida um pouco mais prolongada e uma
morte pouco dolorosa. Quando ele pegou os resultados do exame e me ligou,
nem eu, nem ele sabíamos direito o que pensar, falar ou fazer. Depois
de poucos meses, ele foi afastado do banco e deixou de freqüentar
as aulas, porque não podia mais sair muito de casa.
Um dia ele veio me visitar e tentar mais uma aula de cantorias em duo,
que a gente adorava fazer, mas não o conseguiu muito bem, porque
não forçava mais o seu diafragma como antes. Antes dele sair
eu pedi que ele fosse até a esquina e chamasse na minha casa o cara
que ficava lá com uma kombi avisando num cartaz "a frete", que levava
qualquer coisa a qualquer lugar. Mandei colocar o meu piano alemão
na Kombi e levar pra casa do Paulo. A última notícia que
tive de Paulo há anos e anos atrás, foi que ele passava suas
horas em casa tocando e tocando as teclas de marfim que desafinaram no
transporte mas que não tinha problema pra ele, que o som ainda era
lindo assim mesmo.
Nunca mais ouvi sobre Paulo ou sobre meu piano de armário, e ainda
que eu nunca mais tenha podido comprar um outro piano, porque a vida da
gente da voltas e muda de um dia para o outro, quando eu lembro da alegria
do meu ex aluno tocando em suas últimas horas as teclas desafinadas
de marfim, eu me sinto bem, tão bem, que não me importo de
ter tido que adiar meu sonho até que eu possa estar de novo sentada
em uma banqueta e reaprendendo as músicas que eu nunca mais toquei
nem mesmo no violão, que dispensei assim que meu piano entrou mudando
a decoração do meu quarto.
Patrícia Evans