Um dos objetos mágicos para me transportar de volta à infância é uma velha máquina de costura "Elna", verde cor de abacate, que até hoje se abre reluzente e operosa sobre a mesa da cozinha da casa da minha tia. Contando, seguramente, mais de quarenta anos, ela é de uma eficiência e praticidade que faria inveja a muito "design" moderninho. Além de poder ser carregada para todo lado dentro de uma espécie de maleta que, aberta, se encaixa ao corpo da máquina em minutos, a portátil "Elna" transforma idéias e um pouco de dedicação em maravilhas.
De sua afiada agulha já brotaram gerações de vestidos, saias, calcinhas e calções, blusas, blasers e que tais. Conta minha tia — endossada por minha mãe e toda geração antiga da família — que na fidelíssima "Elna" foi costurado o enxoval de duas e de outra dezena de primas e amigas. Meu próprio enxoval de bebê foi cuidadosamente gerado naquele retângulo verde. Tempo em que se esperava uma criança com a tranqüilidade de noites debruçadas sobre a máquina de costura, recortando linhos, organdís, piquês, babados, intricados pontos "paris" e toda a delicadeza do mundo.
Tempo também em que as moças não se vestiam em butiques. Folheavam figurinos garimpando modelos bonitos para serem exibidos na quermesse da igreja ou no "footing" em frente à praça. Outra fonte de inspiração eram as fotos dos filmes em cartaz na cidade. O decote de Rita Hayworth, a saia farta de Doris Day, a cintura de vespa de Ava Gardner. Sonhos transportados diariamente de Hollywood para o interior do Brasil através de uma máquina de costura e, claro, de uma boa dose de talento para a adaptação.
Em
sua formatura, minha mãe fez questão de uma "Dama das Camélias".
Lá foram ela e minha tia para a porta do cinema estudar detalhadamente
o decote da atriz, recortado de camélias brancas que, mais tarde,
dariam um tom meio trágico e misterioso ao singelo baile da escola.
Se as saias subiam, a "Elna" entrava em ação. Se a cintura
descia, recorria-se outra vez à engenhoca. E todo mundo, mesmo com
o dinheiro contado, era capaz de fazer bonito numa época em que
as mulheres não dispensavam o salto alto, as meias de seda e um
"glamour" cheio de drapeados, "tailleurs" e saias justas dos quais morro
de inveja.
Fico pensando de onde surgiu esse nome, "Elna", tão misterioso para mim quanto a origem da máquina, que não sei bem se veio da Itália ou da Suiça. A verdade é que sua imagem grudou-se em minha retina e percorre minhas lembranças mais recônditas. Talvez porque, segundo contam, eu, pequenininha, costumava me empoleirar nos ombros dessa santa tia enquanto ela pacientemente costurava. E cantava.
Sim, cantar ao fazer algum trabalho mecânico, como costurar, lavar ou passar a roupa é outra tradição da família. E, não me perguntem por que, a música eleita é a antiquíssima "Maringá". Aquela mesma: "Maringá, Maringá/ Desde quando tu partiste/ Tudo aqui ficou tão triste/ Que eu garrei a imaginá...". Diz a minha tia que, cantando, o serviço fica mais leve e prazeroso. Já experimentei. Funciona. Pois era com sua voz aguda e afinada no coro das "Filhas de Maria" que titia cantava "Maringá", acompanhada pelo ritmo quase silencioso da velha "Elna".
Tenho uma saudade quase dolorosa desse tempo. E de um outro tempo que não vivi — apenas sei de ouvir histórias e lamento não ter experimentado. Imagino-me, às vezes, apertada num vestido longo de tafetá, rodopiando ao som de Glenn Miller num daqueles bailes faiscantes de metais e flertes; ou tomando um bonde para a sessão da matinê de cinema; ou ainda sendo cortejada no portão dessas casas com janelas na rua, por um moço "educado e cheio de boas intenções". Pra falar a verdade, sinto-me às vezes meio traída por não ter pertencido a essa geração pós-guerra, carregada de esperanças, sutilezas, cuidados, segredos bem guardados, casamentos duradouros, homens fortes e masculinos com suas ombreiras e chapéus, mulheres suaves e maternais.
Que seja uma grande fantasia. Pouco importa. Olhando hoje para a pequenina "Elna" sobre a cozinha, ou cantando "Maringá" enquanto lavo a louça, penso se não perdemos alguma coisa preciosa no meio do caminho. Andamos muito, parece, com a modernidade, a tecnologia, a liberação dos costumes, o trabalho feminino remunerado. Pode ser. Mas já não nos permitimos ser a "Dama das Camélias" por uma noite. Cortamos dos nossos filmes pessoais qualquer cena romântica; apressamos e expusemos nossos corpos, antes tão guardados; afiamos nossas "cabecinhas de vento" para enfrentar, competir, esgrimar discursos, antes, só masculinos; esterilizamos nossos úteros com medo de perder o trem da história, veloz, lá fora.
Será que somos mais felizes agora?
Carmen Cagno