O funcionalismo público anda realmente desacreditado. Muito se
faz, pouco aparece e, sabe como é, “cria fama, deita na cama”. E
assim vamos levando a vida dura, de muito trabalho, com a pecha (que certamente
nossos antecessores criaram) de que apenas se coloca o paletó ou
casaco na cadeira e vira abelha, ou seja, voa e faz cera.
A nova administração municipal do Rio de Janeiro acabou
com salas e divisórias. Agora, modernizados, todos trabalham sem
segredos, uns sabem o que os outros fazem, todos se vêem. Um andar
inteiro de mesas, cadeiras, terminais de micro, pontos de rede, copiadoras
e muito telefone. O barulho chega a ser, por vezes, ensurdecedor. Contudo,
o clima de camaradagem e solidariedade aumentou visivelmente.
Muito bem, o nível de exigência também cresceu.
As tarefas são cobradas com menor prazo para conclusão, as
reuniões de ajustes e planejamentos são mais freqüentes,
enfim, o controle aumentou e o cerco se fechou. Há mais limpeza,
mais presteza, mais eficiência e efetividade.
Dia desses, por coincidência uma sexta-feira treze, saía
eu já tarde do prédio anexo à prefeitura, onde funciona
a Secretaria de Administração, quando percebi que estava
basicamente sozinha. Um frio percorreu a espinha, pois estava tudo deserto
e escuro, apenas o caminho iluminado pelas lâmpadas do chão
viradas para cima, que fazem “aparecer” o prédio visto de longe.
Olhei ao redor e vi somente um casal acomodado (nem tanto) num banquinho
ali perto, aproveitando o escurinho para umas trocas agoniadas de beijos,
e uma pessoa que vinha em direção contrária, encolhido
no casaco longo, escondendo-se do frio e sei lá mais do quê.
Precisava atravessar o imenso pátio, até chegar no ponto
de táxi, lá do lado de fora dos portões. O trajeto
circundava o prédio, mas, apesar dos portões e das grades,
não oferecia muita segurança a quem ali transitava, ainda
mais por ser aberto ao público, como corte de caminho, um atalho
para a distante estação do metrô.
Tomei coragem e apertei o passo, embrulhada no casaco e na gola alta
da blusa, quase que enfiada dentro da roupa, como se isso garantisse alguma
proteção adicional. Ao virar a primeira esquina do edifício,
deparei-me com vários pontos brilhantes, próximos ao chão,
todos em minha direção, estáticos. Parei de pronto,
assustada, quando observei que tais pontos brilhantes se moviam rapidamente.
Imóvel, gelei.
A respiração acelerou, o medo tomou conta da razão.
Os pontinhos brilhantes pararam, embora ainda se mantivessem vivos.
Notei que alguns sumiam e voltavam a aparecer.
A curiosidade foi se aproximando do pavor, a ponto de conseguir dar
mais uns passos na direção do pátio maior, de onde
partiam as pequenas luzes.
Nisso, um carro lá longe fez uma curva e seus faróis
iluminaram, por instantes, o local
onde tudo acontecia. E qual não foi minha surpresa! Eram gatos!
Sim,
olhos de gatos os tais pontos brilhantes. Mas muitos gatos. Incontáveis
gatos!
Ao mesmo tempo que senti alívio, um macabro pensamento passou-me
pela cabeça:
— E se os gatos, mais de vinte, resolvessem me atacar ali? Eram tantos...
eu não teria chances. Ainda bem que não raciocinam e não
são predadores. Ao menos não de seres humanos.
De súbito invadiu-me novo terror.
Eles estavam placidamente sentados com as patas dianteiras esticadas,
peito ereto, acomodados sobre as patas traseiras, e com o rabinho colocado
de lado, em pose solene e muito ameaçadora.
Eles acompanharam todo o trajeto que eu fazia, e me seguiam a cada
movimento.
Não sei como consegui andar. As pernas pesavam feito chumbo
e eu só queria sair dali.
Um mau cheiro terrível de fezes de gato tomou conta do ambiente.
Percebi que havia muito mais gatos nas imediações.
Aparentemente eles saíam durante o dia, caçavam, buscavam
alimento, e retornavam à noite, para um lugar seguro e aconchegante
para dormir.
Comecei a prestar atenção, enquanto andava, naquelas figuras
postadas na escadaria do prédio da PREVI-RIO, por onde agora eu
passava. Pareciam estátuas. Tinha gato de tudo quanto era cor, tamanho
e estado de espírito. Tinha gato risonho, com cara de boa gente,
mas tinha gato sisudo, parecendo meio genioso, tipo “cão chupando
manga”. Sorri sozinha, imaginando um gato-cão. Bem que chamei, em
pensamento, por alguns cães, mas meu chamado não foi atendido.
Verifiquei que também tinha muito gatinho filhotinho, e vi umas
duas gatas prenhas. Uma verdadeira comunidade. Coisa de prefeitura mesmo...
...agradar às comunidades. Vai ver por isso nunca afastaram os gatos
dali, afinal, não cairia bem junto à Sociedade Protetora
dos Animais que a Prefeitura desse sumiço a indefesos gatinhos...
Nesse ponto, já me sentia menos amedrontada com a gataria, percebi
que eles não estavam em clima de animosidade comigo, apenas acompanhando
minhas atividades de transeunte em pânico. Alguns até arriscaram
(gatos gostam de arriscar) um sorrisinho.
A todo o momento, eu só pensava que, de repente, poderia ouvir
algum miado-brado do gato-comandante, assim do tipo: atacaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaarrrrrrrrrrrr!!!
Mas até que não, os bichanos estavam em paz.
Aos poucos, foram-se virando para seus afazeres noturnos, seus cantinhos
para dormir e deixaram que eu passasse.
Peguei o táxi e já comecei a imaginar uma crônica, pois o tema era muito interessante: Gatos na Prefeitura! Alguém poderia achar que Richard Gere nos fazia alguma visita, ou que Brad Pitt pretendia um empréstimo, ou, quem sabe ainda, que Marcelo Antony ou alguns outros artistas Globais tivessem feito concurso público...
Ah, essa minha imaginação...
Mas eu juro que vi tudo isso acontecer, juro!
Sorte deles que ainda está bem longe do Carnaval...
Lílian Maial